A assistente social Vera Mesquita, que trabalha na Estrutura Residencial para Idosos (ERPI) da Casa do Povo de Vendas Novas, assistiu a “uma grande decadência” entre os utentes do lar que já sofriam um qualquer tipo de demência porque “deixaram de ter a presença daquelas pessoas familiares, que eram pessoas de referência para eles”.
De acordo com a profissional, os confinamentos impostos por causa da covid-19 provocaram “um grande agravamento” das doenças mentais, mas afetaram também os outros utentes, que, apesar de compreenderem melhor o que estava a passar-se, sentiam falta da família e tinham medo de apanhar a doença.
Vera Mesquita não tem dúvidas de que a saúde mental e a parte cognitiva dos utentes foram as mais afetadas “naquele início de pandemia” e recorda que o impacto se fez sentir também entre as pessoas que até à altura eram autónomas e frequentavam apenas o centro de dia.
“Tivemos casos de pessoas que começaram a desenvolver problemas e de outras que integrámos na ERPI porque viviam sozinhas, não tinham família, estavam muito sós e tinham medo da pandemia”, recordou à Lusa, lembrando também quem ia ao centro de saúde “completamente atormentado” com medo de ter covid.
Relativamente a quem tinha demência, Vera Mesquita contou que houve casos de pessoas que “perderam a vontade de viver quando deixaram de ter a presença física daquela pessoa que às vezes nem sabem bem dizer quem é, mas que conseguem ainda perceber que é uma pessoa importante”.
Ludovina Rodrigues não tinha demências, mas vivia num lar desde 2013, depois de ter sofrido um acidente vascular cerebral (AVC) isquémico, que a deixou sem mobilidade nas pernas, mas que não lhe retirou a vontade de viver.
A história desta mulher, que morreu com 95 anos, é contada pela única neta, que durante muitos anos, e até à pandemia, todas as semanas visitava a avó e procurava que estivesse ativa, levando-a ao cabeleireiro, a almoçar fora ou a casa da família ou levando-lhe lanches especiais.
“Com a covid isso deixou de acontecer”, recorda Nádea Rodrigues, que conta que com o confinamento veio o fim das visitas da família, que Ludovina passou a ver apenas por videochamada, uma a duas vezes por semana.
Segundo a neta, Ludovina no início reagiu bem e percebeu que “não estava abandonada”, mas como a situação se prolongava cada vez mais no tempo “ela começou a decair psicologicamente, a baralhar-se muito” e a deprimir.
“Isto acabou por matar a minha avó. Ela morreu por causa da covid-19, sem nunca ter tido a doença”, lamentou, apontando que Ludovina morreu em setembro de 2020, cerca de seis meses depois do início da pandemia.
José Nunes, 87 anos, era um homem que estava “fisicamente muito bem e que tinha autonomia”, mas em quem a pandemia teve um impacto “francamente visível”, contou a nora, segundo a qual o sogro foi dando alguns sinais de senilidade nos últimos oito anos, apesar de nunca lhe ter sido diagnosticado nada mais grave.
“Ele ia fazendo a vida dele, fazia a comida, as compras, ia muito ao café, fazia muita vida de rua”, disse Rosária Rato, segundo a qual o sogro no início não percebeu a gravidade da situação quando foram impostos os confinamentos e reagiu de uma forma extrema, depois de um dos filhos o repreender, fechando-se em casa e passando o dia inteiro de janelas fechadas.
Segundo a nora, José Nunes ficou deprimido, chorava muito porque não via os amigos e não podia ir ao café e os episódios provocados pela senilidade começaram a ser mais frequentes, ao ponto de não distinguir entre o dia e a noite, por exemplo.
Em 24 de dezembro de 2020 foi institucionalizado e depois foi-lhe diagnosticada doença de Alzheimer já em estado avançado.
Para Rosária, a pandemia não é a culpada pelo aparecimento da doença, mas acredita que se não fosse a covid-19 e o impacto que isso teve no sogro, teria sido possível fazer um diagnóstico mais cedo e talvez atrasar a sua progressão.
A Noémia Sousa, 89 anos, a pandemia provocou muito medo e fez com que ficasse três meses em casa sozinha, sem ir à rua, num 10.º andar em Sacavém, Loures.
“Eu já tinha pouca força nas pernas porque os anos já eram muitos e aqueles três meses que eu estive em casa fiquei muito pior e agora quero andar, mas sozinha já não consigo. Ando de muleta e quando quero ir à rua há aqui uma vizinha que me ajuda”, adiantou.
Naquela altura, falava todos os dias ao telefone com os filhos e as netas, o que ajudou a passar o tempo e a matar saudades, apesar de admitir que custou muito.
O medo que ganhou na altura mantém-se, não só porque não quer correr o risco de “passar alguma coisa às bisnetas”, mas também porque acredita que se contrair covid-19 não tem salvação.
Para casos como o de Noémia, mas não só, a Junta de Freguesia de Benfica, em Lisboa, criou um ‘call-center’ para ligar a todos os cerca de oito mil idosos identificados a saber como estavam, se estavam isolados, se precisavam que lhes levassem compras ou medicamentos, ou só para fazer companhia.
“Isto cresceu e quando terminou o confinamento nós tínhamos na nossa lista 16 mil seniores”, contou o presidente da junta.
Segundo Ricardo Marques, foi possível detetar “muitos casos de desespero”, fruto do afastamento da família ou da vida social que os idosos da freguesia tinham e que perderam durante os períodos de confinamento.
“Tivemos muitos seniores em que claramente sentimos uma deterioração da sua saúde mental e das suas expectativas. Estão mais pessimistas, mais negativos com o dia de amanhã”, adiantou, sublinhando que mesmo com a estratégia “de grande proximidade” que foi delineada “era impossível colmatar a ausência de contacto físico e pessoal”.
Em geral, o constitucionalista Jorge Reis Novais entende que os direitos das pessoas mais idosas “foram bem salvaguardados” a partir do momento em que o governo reagiu à pandemia, mas disse ter dúvidas relativamente às regras de confinamento impostas às pessoas com mais de 70 anos que estavam em casa, e que eram mais apertadas do que para as pessoas com idade inferior.
“Isto é discriminatório e do ponto de vista jurídico não há fundamentação para isso”, sublinhou.
José Gaspar, 80 anos e um dos 35.367 fregueses de Benfica, recordou à Lusa que, apesar de terem sido tempos “medonhos”, ligavam-lhe todas as semanas para saber “se precisava de alguma coisa”, e que também ajudou terem retomado o projeto “Memória Ativa”, de estímulo das capacidades cognitivas e da memória, mesmo que à distância.
De uma rotina pré-pandemia que incluía duas horas no ginásio, passeios, caminhadas ou idas ao cinema, José Gaspar passou a estar em casa, onde vive sozinho desde que enviuvou, confrontado com o que o mais assustava: a solidão.
Garante que não ficaram sequelas e que graças ao departamento de apoio psicológico da junta ultrapassou tudo. No entanto, acha que a pandemia provocou um envelhecimento mais rápido das pessoas e que a ansiedade e o desespero deixaram sequelas permanentes e acentuadas.