"Tinha cinco anos. Lembro-me perfeitamente desse dia. Foi um dia maravilhoso", comenta Edite Pereira à agência Lusa, lembrando a primeira viagem feita por si no comboio que em tempos ligou o Funchal ao Monte e, depois, ao Terreiro da Luta, numa extensão de quase quatro quilómetros.
A experiência ficou-lhe de tal forma gravada na memória que ainda hoje sabe que usava "um vestido branquinho, com umas estrelinhas em azul", e que "a viagem foi muito boazinha".
"Gostei muito e não tive medo, porque vinha com o meu pai e vinha satisfeita", conta, entre sorrisos.
O "único receio" que sentia em todas as viagens que fazia naquele transporte, agora inexistente na ilha, era quando o comboio passava na ponte, na chegada ao Monte, porque "parecia que abanava um bocadinho em cima das calhas".
"Muitas pessoas usavam o comboio. Nunca ia vazio, era sempre cheiinho", realça, explicando que o transporte "marcava a vida das pessoas no Monte", uma das freguesias nos arredores do Funchal, nas zonas altas.
Quando o comboio chegava lá acima, várias pessoas iam para o Largo da Fonte, no centro daquela localidade, aguardando algum familiar ou esperando mercadorias.
Os passageiros, continua Edite, eram sobretudo turistas. Quando desciam do comboio, eram circundados pelas crianças da localidade, que lhes vinham pedir "one pen" (um "penny" é um centavo na moeda inglesa), para "levarem mais um dinheirinho para casa".
Ainda assim, o comboio era "uma coisa normal" no quotidiano da freguesia.
Edite ainda se recorda de que a configuração do percurso entre o Funchal e o Monte "era muito diferente" da atual – hoje é preenchida pelo casario, mas na altura existia "muito mato na beira das calhas" e "muitas cameleiras que davam aquelas flores lindas que os pequenos apanhavam para dar aos estrangeiros".
"Era muito bonito", resume. A última viagem que fez ao Monte no comboio terá feito quando tinha uns oito anos.
Ficou triste quando o comboio desapareceu – um fim ditado por vários fatores, como uma explosão (1919) que provocou quatro mortos, um descarrilamento (1932) e a falta de turistas na sequência da II Guerra Mundial.
A composição fez a última viagem, "simbólica", em abril de 1943.
Na opinião de Edite Pereira, "dava movimento à freguesia" e, embora existissem já os automóveis e autocarros, "era outra história, porque o comboio era mais bonito".
Na memória fica também a imagem posterior de uma "carruagem toda despedaçada abaixo do Terreiro da Luta", em degradação, que lhe fazia impressão.
De ano para ano, o ferro foi sendo vendido e a madeirense via desaparecer mais um bocado da composição — as calhas, a maquinaria.
"Para esta malta nova falar hoje do comboio é zero. Não conheceram e é uma história, uma coisa assim como a história da carochinha", refere, vincando que "esta gente mais jovem não se lembra, não sabe e ninguém liga".
As duas estações em ruínas (Pombal, no Funchal, e a do Monte), fotos e alguns filmes antigos são elementos que preservam a história do comboio que existiu em tempos na Madeira.
A Câmara do Funchal já adquiriu o edifício da estação do Monte e pretende transformá-lo num núcleo de memória, o que deixa Edite "satisfeita".
"Aquilo ali assim [em ruínas] era um aborto", afirma, frisando que se o projeto da autarquia se concretizar "ao menos dá para ver aquele aspeto que tinha".
Porém, sublinha, deveria mesmo "aparecer um comboio, nem que fosse só para fazer um espaço pequeno".
"A gente sabe que não dá para ir para o Funchal, mas ao menos do Monte até o Terreiro da Luta já era bom", sugere. Essa, acrescenta, é "uma esperança que não morre".