O debate geral, um dos pontos mais altos para a diplomacia internacional, começou em Nova Iorque, com o discurso de António Guterres, na presença de mais de 100 chefes de Estado e de Governo e representação diplomática de todos os 193 Estados-membros da ONU.
Segundo o secretário-geral da ONU, “o mundo nunca esteve tão ameaçado”, com seis grandes temas de divisão: assalto à paz em todo o mundo, alterações climáticas, fosso entre ricos e pobres, desigualdade de género, divisão tecnológica ou digital e divisão geracional.
Grande parte dos problemas advêm da decorrente pandemia de covid-19, que tem criado e exagerado as desigualdades sociais e económicas no mundo, mas o secretário-geral sublinhou ainda uma outra “doença contagiosa”: a desconfiança a vários níveis – sejam as teorias da conspiração que entram em contradição com a ciência, a população sem confiança nos seus governos ou ainda a falta de cooperação entre países em temas que necessariamente dependem do multilateralismo.
Guterres classificou como “obscenidade” e grande “falha ética” global o facto de as vacinas não estarem a ser distribuídas de forma uniforme no mundo, devido à “tragédia de falta de vontade política e egoísmo”.
“Em vez do caminho da solidariedade, estamos num caminho sem fim para a destruição”, lamentou Guterres, que também declarou que a “interdependência tem de ser a lógica do século XXI”.
O chefe da ONU lembrou aos líderes que “as promessas não valem nada se as pessoas não virem os resultados no seu dia a dia” e, pelo contrário, se depararem com violações dos direitos humanos, corrupção ou um futuro sem grandes oportunidades.
Os “impulsos mais obscuros da humanidade” surgem com esta constante falta de resultados para uma situação com mais esperança, considerou Guterres.
A defesa da “supremacia cultural, domínio ideológico, misoginia violenta ou ataques aos mais vulneráveis, incluindo refugiados e migrantes”.
O antigo primeiro-ministro português sublinhou que a paz e o respeito pelos direitos humanos estão a faltar, nos mais graves casos, como o do Afeganistão, Etiópia, Myanmar, Sahel, Iémen, Líbia, Síria e ainda no Haiti, e muitos outros locais onde “tantos foram deixados para trás”.
Outra das grandes preocupações internacionais é a divisão que se cria entre dois grandes poderes, um tema que, apesar de Guterres não nomear, é já recorrente nos discursos dos últimos anos – Estados Unidos e China podem criar um problema “muito menos previsível e muito mais perigoso do que a Guerra Fria”, salientou o secretário-geral.
“Temo que o nosso mundo se esteja a arrastar para dois conjuntos diferentes de regras económicas, comerciais, financeiras e tecnológicas, duas abordagens divergentes no desenvolvimento da inteligência artificial – e, em última análise, duas estratégias militares e geopolíticas diferentes”, explicou.
A nível das alterações climáticas, Guterres lembrou muitos dos apelos já conhecidos, como a transição para energias renováveis, redução da utilização dos combustíveis fósseis e carvão, mais impostos e menos subsídios sobre recursos naturais poluentes.
A grande diferença económica entre Estados é visível como efeito da pandemia de covid-19, agora que “as economias avançadas estão a investir quase 28% do seu Produto Interno Bruto na recuperação económica”, uma média que cai para 6,5% nos países de renda média e “para 1,8% nos países menos desenvolvidos”, acrescentou o secretário-geral.
As previsões do Fundo Monetário Internacional apontam que nos próximos cinco anos o crescimento económico ‘per capita’ na África subsaariana seja 75% menor do que no resto do mundo.
Neste discurso, Guterres renovou um apelo para a reforma da arquitetura da dívida internacional, que a torne mais equitativa, e para a reforma dos sistemas de impostos em todo o mundo, para prevenir evasão fiscal, branqueamento de capitais ou outros fluxos financeiros ilícitos.
O português enfatizou também os efeitos negativos da desigualdade de género e apelou para sociedades com “representação mais igual”, que são, consequentemente, “mais estáveis e pacíficas”.
“A igualdade das mulheres é essencialmente uma questão de poder. Devemos transformar urgentemente o nosso mundo dominado pelos homens e mudar o equilíbrio de poder, para resolver os problemas mais desafiadores de nossa época”, considerou o antigo alto comissário das Nações Unidas para Refugiados.
Por outro lado, o acesso à internet tem de se tornar um direito humano, defendeu Guterres, dizendo que até 2030 todo o mundo deveria ter ligação à internet, mas com estratégias para combater o armazenamento de dados pessoais que estão a ser usados comercialmente para lucros corporativos ou ainda pelos Governos para “controlar ou manipular comportamentos, violando direitos individuais ou de grupo e debilitando democracias”.
Por último, para as cerca de 11 mil milhões de pessoas que se estima deverem nascer até final do século, são necessários mecanismos para dar mais voz aos jovens, para garantir educação de qualidade e para dar mais poder àqueles que serão herdeiros do mundo de hoje.
A esperança ainda existe, mas necessita que “todos façam a sua parte” sem demoras e com cooperação global e com um multilateralismo renovado, concluiu o secretário-geral da ONU.