Moser, primeiro biógrafo internacional de Clarice Lispector, justificou o seu interesse pela autora como um caso de “paixão”, por isso a divulgou em inglês, e espera ver a sua estátua junto à de Fernando Pessoa.
No terceiro dia do Festival Literário da Madeira, o norte-americano Benjamim Moser conversou com a jornalista Raquel Marinho sobre a biografia da escritora brasileira, nascida na Ucrânia, e contou que chegou a Clarice Lispector casualmente, por causa da língua portuguesa, e que esse contacto foi arrebatador.
Fluente em oito idiomas, Benjamim Moser contou como decidiu um dia aprender chinês (depois de já ter estudado algumas línguas europeias) e fracassou na tentativa, tendo-se voltado então para o português, simplesmente porque “era o que havia disponível” e para o que “tinha horário”.
“Depois da gramática, começámos por literatura lusobrasileira e não fiquei muito apaixonado. Já estava cansado. E então li ‘A hora da estrela’. Li uma coisa, eu não entendi, e acabei a entender tudo pelas entranhas, pelas vísceras. Essa mulher entrou em mim de maneira espetacular. Hoje ainda estou aqui a falar dela porque é uma paixão”, contou emocionado à plateia quase cheia do Teatro Baltasar Dias, no Funchal.
Sobre a decisão de escrever a biografia de Clarice Lispector – “Porquê este mundo: uma biografia de Clarice Lispector”, na versão mais recente, editada pela Relógio d’Água – Benjamim recua ao Festival de Paraty em que o autor apresentado era a escritora brasileira, para contar que estava na Holanda e comprou imediatamente um bilhete de avião, porque sentiu um “chamamento”.
“Em qualquer paixão, a pessoa quer saber quem o outro é, o que come, são perguntas banais, mas quando amamos uma pessoa, o facto de ela gostar de Beethoven e não de Elvis é um fator de grande fascinação”, contou.
Benjamim Moser ficou “com raiva” da maneira como Clarice era tratada: “No Brasil há tendência de enterrar a vida que há na arte, por causa da visão académica, o que, para mim, lhe tira a vida e o coração selvagem, que é o que nos atrai na arte. Eu escrevo sobre ela, porque eu amo ela, porque quero conhecê-la”.
Sobre o facto de a escrita de Clarice Lispector ser considerada em alguns meios “hermética”, Banjamim Moser afirmou que esse é um “rótulo que há tendência de se dar a alguém que dá trabalho conhecer”.
“Quando falo de Clarice e lemos os contos infantis, toda a gente percebe. Os livros, de facto, não são para todo o mundo, mas essa ideia de que os livros têm de ser acessíveis a todas as pessoas, até à mais preguiçosa e mal formada, é uma ideia ruim”.
A este propósito, o autor disse que há uma advertência da escritora no início do seu livro “A paixão segundo G.H.”, em que ela diz que gostaria de que o livro “fosse lido por pessoas de alma já formada”.
“Esta já é uma frase linda, mística, de aproximação a deus. É um livro terrificante, extremo, além do normal”, classifica Moser, explicando que Clarice nasceu com vocação para ser sacerdote, uma vocação divina, que lhe vem, desde logo, do facto de ter sido concebida para salvar a mãe, que tinha sífilis, na sequência de uma violação durante a guerra na Ucrânia, e que se acreditava poder ser curada com uma gravidez.
A mãe acabou por morrer quando Clarice tinha nove anos, o que lhe causou uma grande revolta contra Deus, uma figura da qual se volta a aproximar mais tarde, porque “a vocação não desaparece assim”, explicou o autor.
Em “A paixão segundo G.H.” há “a náusea do encontro com Deus”, diz Benjamim Moser, para quem este livro é “uma das obras primas do século, da língua portuguesa”.
Durante a doença da mãe, Clarice, então com sete anos, contava-lhe histórias para a entreter, e “eram histórias sobre milagres, que é uma coisa que me toca imenso: uma menina para quem o maior sonho era salvar a mãe". "As histórias dela têm sempre essa missão”, contou Moser, confessando que “adoraria que algum desses contos fosse encontrado no jornal de Pernambuco – Clarice com sete anos, não publicada”.
Benjamim Moser destacou ainda a forma como a escritora “deu beleza a histórias de pessoas desprezadas, no Brasil, sobre pobres, sobre a dona de casa que vai às compras”.
“Entender Lispector não tem nada a ver com formação ou com inteligência, é uma coisa de sentimento e corpo. Posso apaixonar-me por uma pessoa e os outros não e não dá para explicar porque a amo. A solução é ler e ver o que acontece”, afirmou.
LUSA