Na década de 1960, num país onde vigorava um regime ditatorial e os jovens começaram a ser enviados em massa para a guerra, surgiu na música “um movimento geracional, quase homogéneo, que tinha como objetivo claro o fim da ditadura e o fim da guerra colonial”.
Atualmente, 50 anos depois da revolução que pôs fim ao regime ditatorial e à guerra colonial, esse movimento continua vivo, mas tornou-se “mais heterogéneo”, considerou José Abreu, do Observatório da Canção de Protesto, em declarações à agência Lusa.
É habitual falar-se de música de intervenção quando se fala artistas como José Afonso, Sérgio Godinho ou José Mário Branco (que cantava que “a cantiga é uma arma”), mas o termo “pode suscitar algum tipo de equívocos, porque de certo modo toda a música intervém”, disse José Abreu.
“Quando um autor se apresenta em palco ou em estúdio está a intervir. Daí haver uma preferência nossa [do observatório], e mesmo de alguns cantautores do período mencionado [altura do 25 de Abril de 1974] por outro tipo de termos, como Canção de Protesto”, explicou.
Seja música de intervenção ou canção de protesto, o facto é que continuou a existir no pós-25 de Abril e perdura até hoje, embora em algumas épocas mais ‘audível’ do que noutras.
Na década de 1980, altura do ‘boom’ do rock português, surgiram “muitas canções contra a industrialização das cidades, sobre droga”.
No final dos anos 1990, começam a aparecer os primeiros artistas e coletivos de Rap em Portugal, e desde então “há muita gente que usa o Ritmo e a Palavra para denunciar, para se manifestar”.
Já no novo século, “no período da ‘troika’ [entre 2011 e 2014] houve o despontar de algumas canções e até de alguns grupos”.
Em 2011, ano em que a ‘Troika’ regressou a Portugal, os Deolinda apresentaram o tema “Parva que sou”, que acabou por inspirar o movimento Geração à Rasca.
O investigador Luís de Freitas Branco, formado em Ciências Musicais, no âmbito da sua investigação sobre “A música, o conflito e as canções de protesto de 2011”, fez recentemente um “levantamento documental”, e verificou que, antes de “Parva que sou”, o que “se descrevia da população portuguesa […] é que estava numa apatia, não ia à rua e não fazia nada”.
“E foi uma canção que alterou isto tudo”, disse o autor do livro “A Revolução antes da Revolução”, focado em 1971, ano que mudou a música popular portuguesa, também através da canção de protesto, e de álbuns como “Cantigas do Maio”, de José Afonso, “Sobreviventes”, de Sérgio Godinho, e “Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades”, de José Mário Branco.
“Sempre que houve momentos de conflito na sociedade portuguesa, houve uma reação imediata da música”, defende Freitas Branco.
José Abreu considera que 50 anos depois do 25 de Abril “continua a haver muita gente a utilizar a canção como um instrumento de denúncia, de contestação e de crónica”, mas “os problemas são outros, evidentemente, e as canções serão outras”.
A cantora e multi-instrumentista Ana Lua Caiano, que tem em José Afonso uma das suas grandes influências, concorda.
“Começou como uma rebelião contra uma ditadura, mas sinto que continua sempre. Felizmente não existe uma ditadura, mas existem problemas: ainda não há igualdade em todas as áreas, e a habitação também é cada vez mais um problema”, afirmou, acrescentando que sente que a música “não tem de servir, mas pode servir como uma ferramenta de intervenção”.
Ana Lua Caiano sente que a música que faz “não é propriamente intervenção, mas convida à reflexão”.
O problema da habitação tem sido tema de várias canções de músicos portugueses nos últimos tempos.
Entre outros, a fadista Gisela João fez no ano passado uma versão de “Casa da Mariquinhas” a que chamou “Hostel da Mariquinhas”, na qual canta que encontrou a casa da Mariquinhas num ‘site’ de Turismo: “É bonito ver a casa restaurada/E há emprego p’ro menino e p’ra menina/ Só é pena o português não ganhar para o T3/ E ter que mudar p’ra lá da Cochinchina”.
Já A garota não incluiu no álbum “2 de Abril”, editado em 2022, o tema “O que é que fica”, que conta com a participação do ‘rapper’ Chullage, no qual canta: “Welcome monsieur, a casa é vossa/O mal dos outros não nos faz mossa/Quem não aguenta a subida encosta/Habitação é fratura exposta”.
O músico Luís Varatojo gravou em “Defesa Pessoal”, do projeto Luta Livre, o tema “T0 no Barreiro”, e Eu.Clides divulgou no ano passado a música “Tê menos 1”.
Além da habitação, José Abreu lembrou que nos tempos mais recentes tem havido também “muita canção que aborda questões identitárias e questões de género”.
Em “Deixem lá”, do álbum “Filipe Sambado & os acompanhantes de luxo”, editado em 2018, Filipe Sambado questiona “E se eu parecer uma mulher/O que é que isso quer dizer?” e garante “Visto sempre o que eu quiser/Dê lá por onde der”.
As Fado Bicha editaram em 2019 o álbum de estreia, “Ocupação”, no qual cantam, entre outros temas, sobre o ‘namorico’ “entre o André que é peixeiro e o Chico que é pescador”.
Já Carolina Deslandes divulgou no ano passado “A saia da Carolina”, canção na qual canta: “Cuidado com a Carolina/Que vem de punho cerrado/A saia da Carolina ardeu no meio do mato/A história da Carolina é que ela agora veste fato”.
Para a artista, esta é “uma música de intervenção”, à semelhança de “Eco”, outro tema da sua autoria, ou o projeto “Mulher”, que apresentou em 2020 e no qual aborda a questão da violência contra as mulheres.
“Qualquer canção que faças para intervir numa questão social, qualquer canção que faças que levante uma bandeira e faça pessoas sentarem-se à mesa a falar sobre o assunto que tu queres mudar, é uma canção de intervenção”, disse em declarações à Lusa.
Para a cantora, música de intervenção “é muito mais do que um estilo de música ou do que cumprir regras estilísticas ou de escrita”, “é muito mais uma coisa de intenção do que de forma”.
Embora considere que “a música de intervenção não tem um papel tão fulcral agora como tinha numa ditadura”, continua a ser muito importante.
A Mulher é também tema presente nas canções da ‘rapper’ Capicua, que já gravou sobre a “Mulher do cacilheiro”, de “mão gretada da lixívia/pele negra, cabelo curto”, que tem “saudade de Cabo Verde” e “vontade de um mundo justo”, ou “Medusa” (num dueto com o ‘rapper’ Valete) “a vítima que toda a gente acusa/e de quem a vida abusa”.
Os artistas mencionados neste texto são apenas alguns entre os muitos que usam a ‘cantiga como arma’ e o representante do Observatório da Canção de Protesto acredita que “continuará a haver muita gente a servir-se da canção, não como mero ornamento, mas com uma função estrutural de transformação da sociedade”.
José Abreu prevê que “com o estado atual da política nacional surgirão novas canções”.
Opinião semelhante tem Luís de Freitas Branco, que não tem dúvidas de que a ascensão do partido de extrema-direita Chega em Portugal “vai espoletar uma nova geração de canções de protesto de combate, mas também de raiva, de desalento e de tristeza.”
Lusa