“Alagie” – uma das doze intervenções artísticas selecionadas para o projeto “Passa cá em casa”, integrado no festival “Uma revolução assim”, que terminou no domingo – é um trabalho sonoro, onde as narrativas de pessoas sem-abrigo se ouvem no interior de uma tenda semelhante à que muitas têm como casa.
A Lusa foi assistir à última apresentação do projeto, no domingo, juntamente com uma família de três (pai, mãe e filha adolescente).
Na tenda fechada, quase levantada pelo vento que se fazia sentir, ouviam-se relatos reais, de mulheres e homens, um deles migrante, vidas vividas nas ruas dos Anjos e na Gare do Oriente.
O desconforto entre a família foi visível. “Isto é um murro no estômago”, disse à Lusa Ana Abrantes, ao sair da tenda que foi casa durante 20 minutos.
“O que é dito é forte, o que as pessoas estão a sentir é muito triste”, lamentou, sem deixar de se sentir culpada por ter ali entrado depois de comer panquecas.
“Vivemos num mundo distópico”, desabafou, reconhecendo o seu privilégio de proprietária de casa própria que, ainda assim, só saiu de casa dos pais aos 30 anos e porque iria morar acompanhada.
“Esta crise da habitação não é de agora, está muito pior, mas já começou há muitos anos, é um problema que se vem agudizando”, realçou, preocupada com o futuro da filha.
“Isto não é um problema nacional, é um problema mundial e, se calhar, tem é que ser resolvido mundialmente e não nacionalmente”, apontou.
“Diz-se a uma pessoa ‘vem cá a casa e vamos conversar’. Como é que é isto para uma pessoa que não tem casa?” – foi este o ponto de partida que resultou em “Alagie”, explicou à Lusa Filipa Rosa, no final da sessão.
As autoras quiseram que quem entrasse na tenda sentisse “a intimidade” das pessoas que falam, acreditando que a arte “não pode resolver” a situação de não se ter um teto para viver, mas pode colocar “um bocado de luz” sobre o problema.
“Estas pessoas também têm vidas, não são ‘o’ sem-abrigo. Normalmente diz-se ‘é sem-abrigo’ e há uma ideia pré-formatada e não se quer perceber que são indivíduos, com histórias muito diferentes umas das outras e, se nos sentássemos a ouvir as histórias, respeitávamos essas pessoas pela sua individualidade”, disse.
As duas autoras não conheciam o meio, de modo que “foi um desafio”, que as levou “a lugares surpreendentes”.
Não conseguiram fazer mais do que duas entrevistas por dia. “Emocionalmente, precisava de um dia ou dois para digerir aquilo que tinha ouvido”, justificou Filipa Rosa.
Isso teve reflexos em quem experienciou o trabalho. “Houve pessoas que choraram”, disse.
As autoras tiveram a preocupação de mostrar a diversidade das pessoas em situação de sem-abrigo.
“Descobrimos que há menos mulheres do que homens”, observou Filipa Rosa, numa constatação confirmada por vários estudos.
“Alagie” resultou de um projeto curto, mas Filipa Rosa ficou “com vontade” de o continuar, de o fazer maior. “Queria conhecer mais, porque cada caso é um caso único”, justificou.
“Alagie” foi uma das doze intervenções artísticas sobre a habitação e o habitar selecionadas para o projeto “Passa cá em casa”, integrado no festival “Uma revolução assim – luta e ficção: a questão da habitação”, uma iniciativa do Goethe-Institut Portugal que se realizou entre os dias 25 de setembro e 06 de outubro.
Lusa