Outrora sob a perspetiva de casos isolados e dispersos pelo país, os abusos sexuais de menores cometidos por elementos ligados à Igreja Católica portuguesa adquiriram uma dimensão histórica e social através dos testemunhos de centenas de vítimas recebidos pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica, cuja repercussão se estendeu à divulgação de sucessivos casos na comunicação social.
Sob a liderança do pedopsiquiatra Pedro Strecht, que se havia destacado como médico dos menores abusados no processo Casa Pia há 20 anos, a comissão integra também o psiquiatra Daniel Sampaio, o antigo ministro da Justiça Álvaro Laborinho Lúcio, a socióloga e investigadora Ana Nunes de Almeida, a assistente social e terapeuta familiar Filipa Tavares e a cineasta Catarina Vasconcelos, dispondo ainda de acesso aos arquivos da Igreja.
A recolha de testemunhos, com garantia de anonimato e sigilo, arrancou em 11 janeiro com a missão de ajudar as vítimas a lidar com o sofrimento. Em apenas um mês já tinham recebido 214 testemunhos e no último balanço conhecido em outubro já se registavam 424 testemunhos validados, compreendendo casos de abusos ocorridos desde 1950 e vítimas entre os 15 e os 88 anos.
Os membros da comissão esclareceram à partida que não estava em causa uma investigação criminal, mas adiantaram que as denúncias de crimes que não tivessem prescrito seriam encaminhadas para a justiça, o que veio a confirmar-se até junho com o envio de 17 denúncias para o Ministério Público (MP). Todavia, em outubro foi assumido pela Procuradoria-Geral da República que dos 10 inquéritos instaurados, mais de metade (seis) já tinham sido arquivados.
Apesar da “tolerância zero” aos abusos decretada pelo Papa Francisco, Pedro Strecht vincou que “há um setor da Igreja Católica que quer manter os segredos” e que se tornou “muito claro que houve encobrimento da hierarquia católica em Portugal”, apelando à instituição para “vencer o medo” e recusar “a ocultação da ocultação”.
Contudo, foram os alegados casos de encobrimento da cúpula da Igreja Católica expostos no segundo semestre, nomeadamente os que visaram o cardeal patriarca de Lisboa, Manuel Clemente, e o bispo de Leiria-Fátima e presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, José Ornelas, a estremecerem a instituição, a sociedade portuguesa e até a Presidência da República, com as intervenções de Marcelo Rebelo de Sousa sobre o tema e que levaram ao pedido de desculpas do Presidente.
O relatório final da Comissão Independente será conhecido no dia 16 de fevereiro, num ano em que Lisboa vai organizar a Jornada Mundial da Juventude.