Maria Vale é professora de inglês e português no segundo ciclo e mãe de Júlia, de 11 anos, que anda no quinto ano. Durante a semana, Júlia apenas pode utilizar o telemóvel durante cerca de 90 minutos por dia, porque há sempre trabalhos de casa a fazer. Uma regra que, segundo a mãe, “não é fácil de cumprir, pois [a Júlia] tem grupos criados com as colegas da turma para trabalhos e alega que tem de ver se tem mensagens e tarefas a executar”. Maria acaba por permitir que Júlia aceda ao telemóvel, sendo que “ela aproveita e vê ‘shorts’ e ‘reels'”.
A mãe acredita que a filha não tem “maturidade para ‘saber estar’ no mundo virtual: “acredita em tudo o que vê, lê e ouve. A IA [inteligência artificial] só veio dificultar a vida nesse aspeto”. Por isso, evita que Júlia crie perfis em redes sociais, estando associada às aplicações “onde mantém o grupo de colegas da escola”, sob sua vigilância.
Através de uma aplicação no telemóvel de Júlia, Maria monitoriza a sua atividade, recebendo no seu dispositivo notificações sobre a atividade da filha, dizendo que “anda tudo à roda dos jogos”.
Mas, “isso não é suficiente e há coisas que escapam. Há vídeos que ela sabe que eu não gosto que veja, mas sei que às escondidas ela vai espreitar. Eu gostaria que ela interiorizasse que há conteúdo virtual que tem qualidade e transmite algum conhecimento verdadeiro, e que eu aprovo, mas que a maioria dos vídeos que ela vê são de “totós”, de ‘influencers’ que levam muitas crianças e jovens a fazer tremendos disparates, pondo em risco a sua saúde”, conta.
Enquanto professora, Maria Vale disse que tenta “manter o equilíbrio entre o digital e o manual, pois há uma coisa que se está a perder com tanto digital, a caligrafia e o saber escrever corretamente, do ponto de vista ortográfico e sintático”.
Para a docente, por um lado, a utilização da tecnologia durante as aulas torna-as mais apelativas e “os alunos conseguem reter mais facilmente determinada informação”, mas, por outro, é difícil lidar com a distração digital.
“Há ‘wi-fi’ disponível na escola, eles estão sempre ‘ligados’. É a muito custo que põem o telemóvel no silêncio e o colocam na mochila. Volta e meia lá estão eles, todos tortos para trás a ver as notificações e a responder”, relata.
Bruno Fernandes é pai de Maria e Gonçalo, com 11 e quatro anos, respetivamente, e também lida com o desfio da parentalidade digital. Bruno permite que os filhos vejam, “no máximo, duas horas de TV após o jantar” durante a semana e “aos fins de semana três horas”.
Apesar de as crianças ainda não terem telemóvel, Bruno diz “ensinar a ter cuidado com tudo o que vão ler e ver, porque nem tudo é a verdade”, afirmando estar atento quando os filhos utilizam o telemóvel, nomeadamente em relação às pesquisas.
O pai destaca o “perigo dos jogos ‘online’, porque no mundo virtual nem todos são ‘amigos'”, dizendo que proíbe os filhos de jogarem este tipo de jogos. Maria e Gonçalo acedem sobretudo ao YouTube para “ver desenhos animados que não passam na televisão”.
Bruno considera importante que os filhos aprendam com a tecnologia, mas reconhece que há situações em que o uso de um livro é suficiente.
Carla Santos é mãe de João, de 14 anos, e insiste para que o filho “exerça outras atividades que não as realizadas perante um ecrã”, quando o adolescente recorre ao “telemóvel sobretudo para ver de vídeos e à consola de jogos para jogar e conversar ‘online’ com os amigos”.
Carla confessa que, perante “a visualização constante de vídeos, que aparenta ser viciante, por vezes é necessário intervir para que interrompa”, recorrendo também a ferramentas que lhe permitem “ter algum controlo sobre as atividades” que o filho faz, “mas mesmo assim há muitas que não são facilmente monitorizáveis sem invadir a sua privacidade”.
“O maior desafio é encontrar o limite ou equilíbrio entre aquilo que deverá ser controlado e o direito à sua privacidade enquanto adolescente”, afirmou.
Apesar disso, Carla diz que fala com o filho sobre a sua atividade no mundo virtual, para depois “seguir as mesmas páginas, pessoas e ver o que dizem e fazem”, pois acredita que visualizar o mesmo conteúdo é uma vantagem para “intervir caso seja necessário”.
Questionada sobre a forma como aborda o tema da segurança e privacidade digital, Carla diz conseguir fazê-lo “diretamente”, sendo que “qualquer exemplo que possa surgir é uma oportunidade para falar sobre este assunto.”
Apesar da grande exposição aos ecrãs, a mãe diz que o filho é “bastante sociável e fá-lo facilmente de forma direta, não se cingindo às redes sociais ou comunicação através de dispositivos”.
A psicóloga clínica especializada na área Cátia Castro refere que “os ecrãs estão em todo o lado e não vão desaparecer”, pelo que “é necessário um uso equilibrado e consciente”.
Neste sentido, “a gestão do tempo de ecrã deve começar logo nos primeiros anos. Até aos 18 meses, só mesmo videochamadas com supervisão de um adulto. As crianças até aos dois anos não devem ter tempo de ecrã sedentário, como ver televisão”, refere.
“Depois disso, até aos cinco anos, o ideal é limitar a cerca de uma hora por dia durante a semana, e três horas no fim de semana, desejavelmente com conteúdos educativos”, explicou Cátia Castro.
Já a partir dos seis anos, “não se trata tanto de tempo cronometrado, mas de promover hábitos saudáveis: refeições sem ecrãs, nada de dispositivos nos quartos, e evitar usá-los para acalmar birras”.
Além disso, “é desejável que os pais conversem com os filhos sobre o que estão a ver, perguntar o que acharam, o que aprenderam, se viram algo que os incomodou”, e é necessário lembrar o “exemplo dado pelos próprios adultos: se os pais estão na maioria das vezes ao telemóvel ao pé das crianças, a mensagem que passam é que esse comportamento é o correto”.
A psicóloga refere que “o uso saudável dos ecrãs é possível, mas exige presença, escuta ativa e intenção por parte dos pais/educadores”, destacando a literacia mediática como forma de valorizar a curiosidade natural dos jovens.
Também a Ordem dos Psicólogos, no guia “Vamos falar sobre ecrãs e tecnologias digitais”, reconhece que “nos dias de hoje é praticamente impossível passar um único dia sem olhar para ecrãs” e alerta para que os pais estejam atentos aos sinais e comportamentos dos filhos ‘online’, sublinhando que “a televisão ou outros ecrãs não substituem a importância da interação com adultos e pares – é com as pessoas que as crianças e adolescentes melhor crescem e aprendem”.
Lusa