“O Estado falhou, redondamente, na sua obrigação de manter seguros os seus cidadãos. E falhou porque não providenciou pelo ordenamento da floresta, porque não dispôs de meios de combate a incêndio, não apostou na formação e profissionalização do corpo de bombeiros, não assegurou a divulgação de medidas de autoproteção”, afirmou Andreia Teixeira de Sousa, nas alegações finais do julgamento para determinar eventuais responsabilidades criminais nos incêndios de Pedrógão Grande.
A associação humanitária é visada em pedidos de indemnização civil de cerca de 560 mil euros por dois centros hospitalares. A quantia peticionada é, igualmente, pedida a outros demandados, incluindo arguidos, sendo que, na eventualidade de condenação, a responsabilidade é solidária.
Depois de expressar pesar em nome da associação às vítimas destes incêndios, Andreia Teixeira de Sousa dirigiu-se aos arguidos, em particular ao comandante da corporação, Augusto Arnaut, que “há mais de 20 anos faz parte, sempre a título voluntário, do Quadro de Comando” da associação, “10 dos quais na qualidade de comandante”, cargo “sempre exercido de forma exemplar”.
“(…) Não pode esta associação deixar de associar-se a um profundo sentimento de injustiça por estar a ser-lhe assacada a responsabilidade criminal pelo homicídio negligente de 63 pessoas e ofensas à integridade física agravada de outras 44 pessoas”, declarou.
De seguida, a causídica foi à origem da expressão popular “sem pés nem cabeça”, na forma abreviada, e “sem pés nem cabeça ou coração”, na sua plenitude, para concretizar que esta última “ajusta-se perfeitamente” à acusação e decisão instrutória do processo.
“Sem pés nem cabeça porque (…) toda a prova produzida nos permite concluir que o sr. comandante não omitiu, no exercício das suas funções, qualquer dever a que estivesse adstrito. Antes, fez tudo quanto lhe era exigível, razoável e possível fazer”, sustentou, para lembrar que em 17 de junho de 2017 “se conjugaram uma série de fatores” sem que qualquer dos arguidos “pudesse ter a possibilidade de fazer o que quer que fosse para o evitar”.
A causídica elencou uma série de elementos que considera provados em julgamento, incluindo que as excecionais condições meteorológicas no país ou o caráter imprevisível do incêndio.
Segundo Andreia Teixeira de Sousa, não podem ser os bombeiros, as associações humanitárias e o comandante “a válvula de escape de um sistema consabidamente falido, adiado e fustigado por sucessivas reformas que, em sucessivos anos, ficam por implementar”.
A advogada adiantou que o comandante Augusto Arnaut é funcionário da Câmara de Pedrógão Grande deslocado ao serviço da corporação, pelo que “não é possível, por esta via, a imputação do facto lesivo à demandada [associação humanitária]”.
Quanto à associação, “não tem autonomia para definir as suas áreas, meios e formas de atuação, regulamento interno e homologação dos quadros de pessoal, dependendo, para tal, diretamente da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil, um serviço central, da administração direta do Estado”.
Por outro lado, no município não existe outra corporação, pelo que “a responsabilidade de atuação prioritária e comando para a extinção de incêndios que deflagrem no concelho de Pedrógão Grande pertence-lhe”, mas esta tarefa cabe ao Estado, embora delegada, neste caso, aos bombeiros.
“Nesta confluência, a responsabilidade civil por qualquer facto ilícito e danoso só pode ser, aqui, assacada ao Estado”, acrescentou a advogada, assinalando, “pelo simbolismo que representa o ato e bem assim o momento em que foi praticado”, que o Ministério da Administração Interna, por despacho de sexta-feira, concedeu à associação “a Medalha de Mérito de Proteção e Socorro, no grau prata e distintivo azul”, pelo seu “exemplar percurso” ao serviço da comunidade e da proteção e socorro de populações.
As alegações prosseguem na quarta-feira.
Lusa