Num balanço dos primeiros três meses de trabalho, feito hoje numa conferência de imprensa na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, o antigo ministro da Justiça Álvaro Laborinho Lúcio, que integra a Comissão, precisou que entre os 290 testemunhos validados, 16 ainda não prescreveram e, por isso, foram remetidos ao Ministério Público.
“A esmagadora maioria remete para situações muitíssimo anteriores e que, sem nenhuma dúvida, estão claramente no domínio da prescrição do procedimento criminal”, explicou Álvaro Laborinho Lúcio, ressalvando que, ainda assim, o relatório final, que a Comissão deverá produzir no final do ano, será também enviado ao Ministério Público.
Numa primeira intervenção, o coordenador da Comissão, Pedro Strecht afirmou que os primeiros meses de trabalho permitiram já confirmar que “houve, no passado, múltiplos casos de abuso sexual” e destacou a posição de fragilidade das vítimas que as levou, na maioria dos casos, a não denunciar atempadamente os crimes.
Entre as 290 vítimas, a maioria são homens, indicou a socióloga Ana Nunes de Almeida, sem precisar quantos. Foram identificadas pessoas de todas as regiões do país e de várias faixas etárias, com vítimas nascidas entre 1934 e 2009, que têm hoje entre 87 e 12 anos.
As vítimas tinham entre 2 e 17 anos de idade e os testemunhos remetem para todas as modalidades de abuso contempladas no guião do inquérito disponibilizado pela Comissão Independente na página darvozaosilencio.org.
“É possível afirmarmos, fazendo uma extrapolação a partir das redes de outras vítimas sinalizadas por estas 290 pessoas, que o número de crianças e adolescentes em causa atinge um número muito superior. Mesmo assim, estamos na ponta do ‘iceberg’”, sublinhou a socióloga, reiterando o apelo à apresentação de denúncias e afirmando que tem sido muito difícil chegar ao “Portugal profundo”.
“Mas com estes casos poderíamos já hoje esboçar um primeiro retrato exploratório de pessoas vítimas, pessoas agressoras e contextos de abuso sexual praticados por membros da Igreja Católica portuguesa ou por leigos que para ela trabalham”, acrescentou.
Quanto aos agressores, a Comissão não apontou números concretos, mas admitiu que a maioria dos abusos foi cometida por pessoas diretamente ligadas à Igreja Católica. Por outro lado, Pedro Strecht reconheceu que já foi possível identificar situações de ocultação ou encobrimento, incluindo por parte de bispos que continuam no ativo.
Na mesma conferência de imprensa, a Comissão indicou ainda que procurou reunir com os bispos das 21 dioceses portuguesas, dos quais cinco ainda não responderam ao pedido. Foi também constituída uma equipa científica, liderada pelo investigador Francisco Azevedo Mendes, que vai investigar os arquivos diocesanos.
Em maio, a Comissão Independente vai organizar um conjunto de conferências e debates, duas em colaboração com a Universidade Católica Portuguesa (no dia 06 em Viseu e no dia 18 em Braga) e um encontro científico agendado para o dia 10 de maio na Fundação Calouste Gulbenkian, com o alto patrocínio do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e a participação do padre Hans Zollner, conselheiro do Papa Francisco.
Criada em janeiro para investigar abusos sexuais na igreja católica em Portugal, a Comissão Independente já tinha recebido no primeiro mês de atividade 214 testemunhos de vítimas, com idades que variavam entre os 15 e os 88 anos.
As denúncias e testemunhos podem chegar à comissão através do preenchimento de um inquérito ‘online’ em darvozaosilencio.org, através do número de telemóvel +351917110000 (diariamente entre as 10:00 e as 20:00), por correio eletrónico, em geral@darvozaosilencio.org e por carta para "Comissão Independente", Apartado 012079, EC Picoas 1061-011 Lisboa.
Na altura, e para fazer chegar a sua ação a mais pessoas, a comissão contactou outras estruturas e instituições com maior proximidade à população, nomeadamente comissões diocesanas, institutos religiosos de Portugal, Instituto de Apoio à Criança, Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens, Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, Associação Quebrar o Silêncio e o Sistema de Proteção e Cuidado de Menores e Adultos Vulneráveis.
Até ao final do ano, comissão pretende recolher testemunhos e denúncias de pessoas que tenham sofrido abusos na infância e adolescência, até aos 18 anos. No final dos seus trabalhos, será elaborado um relatório, a ser entregue à Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), que decidirá que ações tomar.
Além de Pedro Strecht, a comissão integra o psiquiatra Daniel Sampaio, o antigo ministro da Justiça Álvaro Laborinho Lúcio, a socióloga Ana Nunes de Almeida, a assistente social e terapeuta familiar Filipa Tavares e a realizadora Catarina Vasconcelos.
Lusa