“Estamos a falar de um número com alguma relevância”, adiantou, à agência Lusa, sem quantificar, Carla Ferreira, a assessora técnica da direção da APAV e gestora da rede especializada que trabalha com crianças e jovens vítimas de violência sexual.
O futsal, a ginástica ou o futebol são modalidades praticadas por algumas das vítimas a quem a APAV presta apoio, “mas estamos a falar de um fenómeno que é transversal”, vincou Carla Ferreira, sublinhando que serem conhecidos, ou se falar em mais situações de alguns desportos, não significa que não aconteça nos outros.
Para a técnica da APAV, adiantar qualquer número “será sempre redutor, porque nenhum número vai ser representativo da realidade, por não se poder achar que os casos reportados são os crimes que acontecem”.
Segundo Carla Ferreira, se no caso dos menores a queixa tem de ser formalizada, embora se procure que esse seja um passo articulado com a família e feita pela própria, quando se trata de vítimas em contexto desportivo adultas, “a maior parte não denuncia”.
A representante da APAV observou que as vítimas em contexto desportivo maiores de idade são por vezes profissionais na área e, nesse contexto, “pensam e repensam” como vão agir.
“Quando são maiores de idade, há uma tendência para não fazerem queixa”, referiu Carla Ferreira, reconhecendo que, “normalmente já são profissionais e entram numa espiral de não o fazer, com receio de prejudicar a carreira”.
Na APAV, acrescentou, o atendimento depende de cada caso e o apoio tanto pode ser em assuntos mais práticos, de índole legal ou jurídica, como emocional, psicológico ou de outra ordem, mas salientou que, “independentemente da vontade ou não de denunciar formalmente a situação, o apoio é prestado sempre no “respeito pelas suas vontades”.
E então, “alguém especializado na matéria pode ajudar a pessoa a fazer a ponderação do que pode ser a melhor decisão para a situação em concreto”, apontando-lhes “os caminhos possíveis” e informando.
Carla Ferreira frisou que “a reação de cada pessoa vai depender de vários fatores”.
“Vai depender do apoio que receberem, quer das estruturas formais, mesmo dos próprios clubes, das entidades, quer também informais, com a família e os amigos, como também vai depender da forma como a pessoa perspetiva a sua vida no desporto e o desporto na sua vida”, elencou a representante da APAV.
Além de eventuais represálias que possam pôr em causa o investimento de anos numa modalidade e o receio de como vai ser a vida no futuro se denunciarem, as vítimas correm também o risco de serem “culpabilizadas, descredibilizadas ou julgadas”, fatores que travam uma queixa, mas, por vezes, a própria revelação da situação que se está a viver a alguém da sua confiança.
Carla Ferreira afirmou que, dos casos que tem em mente, “há um relativo equilíbrio no género, o que acentua a lógica da transversalidade do fenómeno”, embora tenha salvaguardado que “não é de ficar surpreendido se neste contexto se vier a perceber uma prevalência das vítimas do sexo feminino, porque isso é o que acontece, em traços gerais, em todos os outros contextos de violência”.
Das situações que acompanham relacionadas com a prática desportiva, a APAV tem casos “menos fisicamente intrusivos, tipificados como assédio, é o caso de abordagens inapropriadas, mas também situações já com alguma forma de contacto sexual e de contacto físico com as vítimas”, revela a assessora técnica.
A gestora técnica da rede Care alertou ainda para a desvalorização que por vezes é feita de certas situações de assédio, que podem “ser o precedente” para abordagens mais intrusivas, e pormenorizou que por vezes, numa fase inicial, a própria vítima tende a ficar na dúvida se está a interpretar bem o que está a acontecer ou não percebe de imediato que está a ser alvo de abuso.
Várias futebolistas que alinharam no Rio Ave em 2020/21 denunciaram, numa notícia publicada na semana passada, pelo jornal Público, ações de assédio sexual do então treinador do clube de Vila do Conde, Miguel Afonso, que atualmente orientava o Famalicão, tendo também o diretor desportivo, Samuel Costa, sido alvo de um processo disciplinar.
Carla Ferreira considerou que a denúncia de figuras públicas pode fazer com que pessoas que viveram episódios semelhantes revelem o que lhes aconteceu.
“Movimentos que ajudem a desocultação a acontecer são sempre positivos, desde que não ponham em causa a segurança e o bem-estar das vítimas”, disse a representante da APAV.
Plataformas de denúncia como a da Federação Portuguesa de Futebol são vistas como mais um mecanismo que pode dar “maior segurança e pode ter um efeito dissuasor para quem pratica esses atos” de assédio ou abuso.