"Claro que trabalhamos com muita gente que já estava numa situação precária há vários anos, mas hoje temos um novo público. Pessoas que nunca tinham pedido nada a associações como a nossa, porque como trabalhavam conseguiam chegar ao fim do mês. Agora, mesmo trabalhando, as famílias não conseguem pagar tudo", disse Houria Tareb, secretária nacional do Secours Populaire, em declarações à Agência Lusa.
O Secours Populaire ajuda anualmente cerca de dois milhões de famílias em França, distribuindo bens essenciais, incluindo ajuda a bebés, com fraldas e leite em pó, e a constatação a nível nacional é que desde março, altura em que se começaram a sentir as consequências da invasão russa da Ucrânia iniciada a 24 de fevereiro, muitos franceses procuraram pela primeira vez ajuda junto desta organização.
Em Paris, as dificuldades traduzem-se nos pequenos gestos do quotidiano de quem vive na capital do país.
"Um exemplo claro são as dificuldades das padarias em Paris. São empresas pequenas e locais que hoje em dia têm dificuldades em pagar as suas contas, como a da eletricidade e isso acaba por ter influência no preço do pão. Portanto, as consequências acabam sempre por ficar para os mais pobres, já que não conseguem acompanhar o aumento geral dos preços", afirmou Barbara Gomes, conselheira municipal da Câmara de Paris.
Com um salário mínimo bruto de cerca de 1.600 euros, que com descontos fica em cerca de 1.200 euros mensais – sendo que o limiar da pobreza se situa em 1.100 euros -, torna-se agora ainda mais difícil em França pagar todas as suas contas, tendo em conta o aumento geral dos preços, com a época natalícia a despertar já as ansiedades das famílias mais pobres.
"As pessoas que vivem com o salário mínimo não podem ter qualquer tipo de gasto extra por mês. Mal chegam a pagar as suas contas como deve ser, mesmo pagar a internet ou a renda. Estão sempre a contar cêntimos. Ter uma vida social é impossível, comprar uma prenda é impossível. Esta época de Natal causa muita ansiedade em muitas famílias, porque sabem que não vão poder ter uma época festiva como deve ser", explicou Bárbara Gomes.
Esta eleita local relata que atualmente em Paris, onde por indicação governamental, os termómetros nas escolas não devem ultrapassar os 18 graus devido aos preços da energia, as crianças passam as aulas do período da manhã de casaco devido às baixas temperaturas que já se fazem sentir na capital. A autarquia, de esquerda, tenta, no entanto, continuar a apoiar quem está a passar por dificuldades.
"Estamos a fazer o máximo que podemos para que pelo menos não aumentem os preços dos equipamentos públicos, por exemplo, nas cantinas. Estamos a ajudar financeiramente as pessoas com mais dificuldades, mas a autarquia também paga luz. Tentamos que seja um esforço colectivo", declarou a eleita franco-portuguesa, lembrando que Paris tenta também lutar contra o aumento das rendas, tendo aprovado recentemente sanções mais pesadas contra os senhorios incumpridores.
O alojamento é um dos tópicos onde o Secours Populaire nada pode fazer, já que não tem essas competências, mas para Houria Tareb este é um dos pontos onde há mais solicitações, com a líder da instituição a afirmar que em França há cada vez mais crianças a dormir na rua.
"Não podemos responder a todos os pedidos. Por exemplo, não temos resposta para quem não tem casa. É impossível, nós não temos qualquer poder neste campo. E a situação está cada vez pior, nunca tivemos tantas crianças a viver na rua como agora, uma situação impensável até há alguns anos em França", declarou.
Formada em direito do trabalho, próxima dos sindicatos e militante do Partido Comunista, Barbara Gomes indica que o impacto na vida dos franceses em geral é já vísivel e que a tensão social, com o aumento de greves devido à exigência dos trabalhadores de aumentos salariais, é pouco ouvida pelo Governo liderado por Elisabeth Borne e Emmanuel Macron.
"O nosso partido na Assembleia Nacional trabalha para apoiar as reivindicações dos sindicatos em relação à indexação dos salários à inflação e queremos um aumento do salário mínimo, tal como os restantes partidos da esquerda. A vida está cada vez mais cara e mesmo as pessoas que trabalham têm muitas dificuldades no fim do mês. Muitos ordenados não permitem ter uma vida digna. Mas isso não é ouvido pelo Governo", referiu.
Desde o início da invasão da Rússia, o Governo francês introduziu algumas medidas para combater o aumento dos preços como a comparticipação de uma parte dos preços dos combustíveis nas bombas de gasolina, congelamento dos preços da energia ou revalorização das pensões mais baixas assim como ajudas pontuais para o regresso aos aulas ou um bónus para quemt em rendimento mais baixos, medidas que os sindicatos julgam insuficientes.
Um recente estudo do Ifop para o Secours Populaire mostrou que 57 por cento dos franceses inquiridos dizem já ter estado numa situação precária e 65% dizem que conhecem alguém em situação precária, um recorde absoluto no barómetro levado a cabo por esta instituição há vários anos. Juntos das autoridades, o Secours Populaire tenta alertar para a situação atual, nem sempre com muito sucesso.
"Pedimos cada vez mais aos nossos doadores, pedimos aos franceses que nos ajudem a ajudar. Tentamos encontrar empresas. Hoje em dia, temos já poucas ajudas do Estado. O nosso papel junto das entidades públicas é de alertar para o que se passa no terreno, sobre as condições de vida das famílias e pedimos mais meios, mas a resposta nunca está à altura das necessidades", lamentou Houria Tareb.
O Conselho Nacional de Políticas Contra a Pobreza e Exclusão Social estima que existam em França mais de 12 milhões de pessoas que vivem abaixo do limiar da pobreza, um número agravado pela pandemia de covid-19 e que terá agora tendência a aumentar devido aos aumentos gerais de preços no país.
Lusa