Há mais de uma década que os moradores do Cais do Sodré e do Bairro Alto – a que se juntaram, mais recentemente, os de Santos – se queixam de não dormir com o ruído das multidões que se deslocam aos bares destes locais, uma situação que dizem ter-se agravado com o fim das restrições associadas à pandemia.
“Vivo aqui há 13 anos e nunca foi como agora”, disse à Lusa Teresa Fraga, da recém-constituída Associação de Moradores de Santos.
As ruas enchem-se de milhares de pessoas para beber, com colunas e amplificadores de som, desde muito cedo. Surgem “por vagas”, que vão até ao horário de encerramento das discotecas, com os clientes que ficam na rua, “numa espécie de ‘after party’”.
Segundo Teresa Fraga, quando as pessoas não podiam entrar nos bares, devido à pandemia, habituaram-se a comprar álcool à porta, reunindo-se nas ruas para socializar num grande ‘botellón’, e acabaram por “institucionalizar que a casa de banho pública era no meio da rua”.
“Bebem pontualmente num bar ou noutro, complementam com as bebidas que trazem de fora e fazem tudo o que se possa imaginar pelas ruas fora. Até à porta das casas”, contou, salientando que a polícia não atua e que não há uma posição clara da Câmara de Lisboa, à qual a associação já entregou uma petição, embora a resposta da autarquia a petições semelhantes de outras associações lhes traga o receio “de não dar em nada”.
Com estas multidões vêm oportunistas. Segundo os moradores, há venda de droga “à descarada”, grupos com territórios marcados que de vez em quando lutam entre si, gangues que frequentemente se envolvem em rixas, pedras a voar pelo ar e que caem em cima dos carros, venda de álcool nas ruas por vendedores ambulantes, os chamados “mochileiros”, ou até mais organizados, em carrinhas estacionadas que fecham as portas quando a polícia chega e voltam a abri-las quando vira as costas. No final da noite, deixam as ruas cheias de lixo.
Para os moradores de Santos, do Cais do Sodré e do Bairro alto, a solução seriam medidas mais restritivas, mais fiscalização de bares, horários mais reduzidos, mais contraordenações e a retirada da licença de funcionamento para os casos graves e reincidentes, além de medidores do ruído para atuação das autoridades quando o barulho chegasse a determinados níveis e da possibilidade de a polícia dispersar as multidões e passar multas a quem participe no ‘botellón’.
“A polícia minimiza as situações de ruído na rua. São complacentes. A resposta é que têm coisas muito mais graves para tratar, como situações de violência e esfaqueamentos”, disse um representante da associação Aqui Mora Gente (Cais do Sodré), que não quer ser identificado porque há retaliações por parte de comerciantes e não quer ter o carro vandalizado.
Em 2015, foi negociado “o regulamento possível” entre moradores e comerciantes, que fixou horários de funcionamento e medidores de ruído para os estabelecimentos que funcionam com música, nomeadamente que têm de funcionar com portas fechadas, mas a norma foi esquecida durante a pandemia. O próprio plano urbanístico da zona do Cais do Sodré estabelece obrigações que não são cumpridas, queixam-se os moradores.
Contornando a lei, há estabelecimentos que funcionam como restaurantes até determinado horário e que a seguir às refeições viram bares com música, de portas abertas.
“Virou uma feira popular alargada a toda a freguesia. Fiz um primeiro levantamento em abril e já existiam perto de 80 bares e restaurantes a funcionar na Rua de São Paulo. Mais de metade abriu depois de agosto do ano passado. Toda a rua virou um bar aberto. É uma festa, um acampamento, dançam até às 03:00 ou 04:00. É insuportável”, revelou a Aqui Mora Gente.
A associação pediu para ser recebida pela câmara em janeiro, o que ainda não aconteceu, e uma petição enviada à autarquia teve uma primeira “resposta de desresponsabilização”, que desagradou aos moradores. Posteriormente, a autarquia admitiu ativar o Conselho de Acompanhamento da Vida Noturna e a criação da Linha Ruído (atendida pela Polícia Municipal), medidas previstas para setembro.
“A própria câmara já assumiu que não tem meios para resolver o problema. Há, de facto, alguma incapacidade de todas as entidades que podem estar envolvidas neste processo para fazer face a esta invasão de turismo e, por outro lado, sobretudo de pessoas a quererem compensar os dois anos em que estiveram fechadas em casa”, afirmou Luís Paisana, da Associação de Moradores do Bairro Alto.
Por outro lado, os próprios residentes, ao longo do tempo, foram perdendo a confiança numa solução para o problema.
“Quando há queixas sobre estabelecimentos que fazem ruído, às vezes há retaliações, porque nem sempre essa informação é bem gerida pela Câmara e pela polícia”, acrescentou, salientando que muita gente não apresenta queixa porque “muitas vezes os provocadores do ruído tentam comprar moradores, no sentido de oferecer coisas, um café, um cabaz de compras, desde que não façam queixa”.
Segundo Luís Paisana, muitos destes bares são os que “não existem legalmente, porque normalmente os restaurantes e bares mais antigos e com grande tradição – e que são infelizmente os mais fiscalizados – não causam muitos problemas”.
“Os outros bares, cujo negócio é feito na rua, que vendem para a rua, que provocam ajuntamentos, vendem álcool barato, são os que muitas vezes ameaçam moradores, porque de facto estamos a tirar-lhes o negócio, porque não querem ser fiscalizados”, disse, realçando que a associação do Bairro Alto tem tentado, até com a ajuda de comerciantes, que haja uma separação entre os que cumprem e os que não cumprem.
Os moradores esperam um agravamento da situação em setembro, com o regresso das pessoas à cidade. A Aqui Mora Gente espera finalmente ser ouvida pela autarquia, para que possam delinear algumas soluções, até com base noutras cidades europeias que já tiveram este tipo de problema, como Barcelona, onde existem multas que podem ir até aos 600 euros para quem for apanhado a beber álcool nas ruas.
A freguesia da Misericórdia perdeu 3.000 a 4.000 moradores nos últimos anos, muitos por causa deste problema e não só por causa da lei das rendas, porque é insuportável viver aqui, salientou a associação, salientando que os 13.000 eleitores que ainda ficaram “merecem respeito”.