O Carnaval da Rua da Carreira, no Funchal, foi durante décadas o mais popular da Madeira, mas atualmente persiste apenas na memória dos residentes mais antigos, que recordam com saudade a "batalha" que ali se travava na Terça-Feira Gorda.
"Era como uma guerra. Uns eram mais decididos do que outros. Alguns até faziam brincadeiras perigosas, pois traziam certas ferramentas para meter medo às pessoas e, às vezes, acontecia mesmo agredirem alguém", contou à agência Lusa Maria José Fernandes, que vive na rua há cerca de 50 anos.
A Rua da Carreira, com uma extensão de 760 metros, é uma das mais antigas da capital madeirense e durante décadas foi também uma das mais importantes, devido à enorme atividade comercial e ao alto estatuto social de muitos residentes, pelo que na época do Carnaval era ponto de concentração e passagem obrigatória dos foliões.
"Vinham todos na brincadeira, estudantes e também gente velhinha, escreviam letreiros nas paredes, jogavam ovos podres, tomates podres, farinha. Havia um momento em que tínhamos mesmo de fechar as janelas", recordou Maria José, que tem 76 anos e assistiu a muitas destas "batalhas".
No decurso da primeira metade do século XX, os excessos que aqui se cometiam eram de tal ordem graves que, em 1910, o Governo Civil emitiu um edital com proibições. Mais tarde, em 1948, foi também proibido o uso de máscaras, bem como os travestis.
No entanto, a "batalha" de ovos, tomates, farinha, água, serpentinas e ‘confetti’ prosseguiu por muitos anos e os madeirenses continuaram a usar máscaras e disfarces quando passavam pela Rua da Carreira, que atualmente está integrada no Núcleo Histórico de São Pedro.
"As pessoas iam procurar roupas velhas, quanto mais velhas melhor", contou Maria José Fernandes, explicando que geralmente as mulheres vestiam roupa de homem e os homens roupa de mulher. A máscara consistia numa meia de senhora enfiada na cabeça ou num simples pedaço de cartão com "desenhos feitos à mão e furos para os olhos".
Naquele tempo, o Carnaval na Rua da Carreira era apenas comparável, em termos de concentração de pessoas, à passagem da procissão do Corpo de Deus.
Maria José Fernandes, que se conta entre os residentes mais antigos da rua, assegura que a "batalha carnavalesca" da terça-feira de Entrudo era, de facto, um dos "acontecimentos mais importantes" do ano.
"Era bonito. Traziam guitarras, rajões, castanholas e vinham também as bandas de música, como os ‘Guerrilhas’ e os ‘Artistas’, e era um desfile em quase toda a rua", recordou.
Atualmente, a Rua da Carreira está fora da rota dos foliões, que se deslocaram para as avenidas marginais e marcam presença em dois grandes cortejos – o Alegórico e o Trapalhão.
O Cortejo Trapalhão, na terça-feira de Carnaval, é considerado mais autêntico e o que melhor espelha a tradição madeirense e a memória dos tempos áureos da Rua da Carreira.
"A rua em si também mudou bastante nos últimos 50 anos. Para melhor ou para pior, não sabemos dizer", comentou Maria José Fernandes, acrescentado que "está tudo incerto", embora comece "a mexer outra vez", mas apenas em termos de comércio.
No que toca ao Carnaval, porém, assegura "não há comparação possível" com o daquele tempo.
LUSA