O tempo está chuvoso e o vento sopra forte, furando o intenso nevoeiro que cobre toda a ilha de São Jorge. No concelho da Calheta, numa rua inclinada de frente para o mar revolto, Manuel Morais está a carregar sacos para o interior da sua casa.
“Se fosse eu também gostava que me ajudassem”, diz aquando da passagem da Lusa.
Manuel Morais, 73 anos, está a ajudar a transportar os sacos de Maria de Jesus Ávila e de Eduarda Melo, mãe e filha, que decidiram abandonar a casa onde vivem na zona da Beira, nas Velas, devido à crise sismovulcânica que está a abalar a ilha.
“É difícil deixar as nossas casas. Nós temos as nossas coisas. Temos os nossos animais. Conseguimos trazer aquela, mas tínhamos outra”, diz Eduarda Melo, apontando para a gata Pitucha em cima da cama.
“Ela não vai à rua. Se eu a deixar na rua, ela morre. A outra deixei lá. Deixei com comida e é esperar que corra bem”, prossegue.
Eduarda, que se confessa “nervosa” com toda a situação, vai partilhar a cama com a mãe num quarto que está agora composto de malas e onde na entrada está a areia e a caixa de transporte da Pitucha.
“Já é muito bom e estamos muito bem instaladas. É um grande favor as pessoas ajudarem quem precisa”, diz, sinalizando que tinha a possibilidade de ir para São Miguel, onde vivem o filho e os três netos.
Mas não foi. Ficou em São Jorge. “Eu não posso abandonar o meu serviço”, explica a funcionária da casa de repouso de idosos, localizada nas Velas e cujos utentes já foram transportados para a Calheta.
Manuel Morais é pai da cunhada de Eduarda Melo. A mãe de Eduarda, Maria Jesus Ávila, com 79 anos, não consegue conter a emoção por ter saído de casa. “Morreu-me um filho no mar há 13 anos e foi uma dor muito grande. Mas, esta também está a ser. A gente abandonar a nossa casa, nunca pensei”, diz, com a voz embargada e as lágrimas vincadas na face.
Sair de casa e “deixar tudo para trás” é “duro”. Nem a “experiência” de ter passado por várias crises sísmicas fazem abrandar o “nervosismo”. O “pior” para Maria Jesus Ávila é a “ansiedade” de saber que a qualquer momento pode ocorrer uma catástrofe.
“É uma ansiedade. Oiço as notícias e fico fraquinha. Dá-me uma fraqueza. Enfim. Estamos à espera, mas eu não esperava nada disso”, confessa.
Maria Jesus diz que se sente mais “segura” na Calheta, até porque na Beira, onde vive, os “vizinhos também já abandonaram as casas” e ela estava a viver “ali quase sozinha durante o dia”. Agora, diz que “vai rezar” às imagens que já estão ao seu lado na mesinha de cabeceira, com a esperança de que tudo “não passe de um susto”.
“Se acontecer uma erupção, vai limpar tudo. Oxalá não seja nada. Deus queira que sim. Isto é da natureza”.
No piso inferior da casa, está um amigo de Manuel Morais, também natural das Beiras, que preferiu não ser identificado. Conta apenas passar o fim de semana na Calheta e regressar a casa quando “a coisa acalmar”.
“Aquilo não está nada bom [nas Beiras]. Estou sempre a sentir. Pedi ao senhor Manuel para vir para aqui porque não me estava a sentir bem lá em baixo. Não me estou a sentir bem. Já há duas ou três noites que não durmo nada e isso não pode ser”, diz.
Todo o ambiente que se vive na ilha está a “afetar as pessoas”, prossegue, acrescentado que “muitos já caminharam da ilha para fora”.
“Depois, é capaz de vir mais uma ou duas pessoas, mas ainda não sei quando”, revela o “senhor Manuel”, considerando que a situação exige “toda a atenção” porque com a “natureza não se brinca”.
Manuel lembra-se da crise sísmica de 1964, onde tudo “estremecia” e dos sismos de 1980 e 1998 que “estragaram muita coisa” na ilha.
“Oxalá não aconteça nada, mas a gente não pode descansar. Isso num instante pode virar aqui para esta banda. Nunca se sabe”, alerta.
O “senhor Manuel” diz que, enquanto tiver espaço, vai continuar a receber “quem precisa”. É o símbolo de um concelho que está a acolher os habitantes da outra metade da ilha.
Pelas ruas da Calheta, veem-se poucas pessoas, também reflexo do tempo agreste. David acabou de chegar ao concelho, proveniente da Fajã do Ouvidor, pertencente às Velas.
Foi obrigado a sair de casa, uma vez que o Governo Regional emitiu uma declaração de alerta e proibiu o acesso às fajãs das Velas, ordenando a retirada da população. A conjugação entre o mau tempo e a sismicidade aumenta o risco de desabamentos.
“Só trouxemos o suficiente. Vim com a família, a minha sobrinha, a minha irmã, o meu sobrinho e a minha cunhada e a mãe do meu cunhado. Fácil nunca é. Quem está habituado ao que tem, não é fácil abandonar tudo para uma situação chata como essa”, afirmou.
David, que está em casa de “pessoas amigas”, conta apenas ficar “uns dias” até ao levantamento da declaração de alerta que está prevista vigorar até às 23:59 de segunda-feira.
Se não fosse obrigatório, não tinha saído de casa: “para morrer, basta estar vivo e sair à rua”.
Também pelo centro da vila circula Noémia Alves, que vive na Ribeira do Nabo, nas Velas, mas que agora mudou de concelho devido ao “receio” e porque a Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS) onde trabalha transportou os utentes para a Calheta.
Faz o turno da noite, mas não quer voltar a casa durante o dia. “Estou a tentar arranjar um alojamento local na Calheta, porque os evacuados da minha zona vão para a Ribeira Seca, mas como não está a haver evacuação, vim mais cedo para ver se arranjo um alojamento local provisoriamente”, aponta, aludindo ao plano de evacuação do município de Velas.
O município mais afetado pela crise sismovulcânica já divulgou os “pontos de referência” (para as pessoas que precisam de transporte), os “pontos de receção" (os destinos finais) e os “caminhos de referência” a utilizar em caso de ordem para evacuação das freguesias de Manadas, Urzelina, Santo Amaro, Velas, Norte Grande e Rosais.
Até lá, Noémia Alves vai ficar onde pode. Apenas quer ficar em "segurança". “Fico no meu carro, até ver. Se não encontrar alojamento local, fico no carro. Tem de ser. Não quero voltar a casa”.
A crise sismovulcânica em São Jorge iniciou-se às 16:05 de dia 19, tendo o sismo mais energético ocorrido nesse mesmo dia às 18:41 com uma magnitude de 3,3, na escala de Richter.
Na quarta-feira, o CIVISA elevou o nível de alerta vulcânico na ilha de São Jorge para V4 (de um total de cinco), o que significa “possibilidade real de erupção”.
Segundo os dados provisórios dos Censos 2021, a ilha de São Jorge tem 8.373 habitantes, dos quais 4.936 no concelho das Velas e 3.437 no concelho da Calheta.