“Prossegue o Chavismo, mas com uma diferença muito importante, que foi a queda dos preços do petróleo e as grandes dificuldades económicas que, nos últimos anos, o Estado venezuelano tem enfrentado”, explicou à Lusa o especialista.
De acordo com Filipe Vasconcelos Romão, embora se possa dizer que “no Chavismo do período de Hugo Chávez, a sua obra é controversa”, já que há, “por um lado, um reforço da estatização da economia e um aumento da dependência da economia em relação ao petróleo, nomeadamente para políticas sociais, e a estatização do sector energético e uma utilização da energia e do petróleo como ferramenta política – que é algo que todos os países que dependem muito da produção do petróleo e das exportações de petróleo fazem -, por outro lado, há um aspeto importante, que é o da distribuição da riqueza gerada por esse petróleo”.
“Se olharmos para os dados estatísticos em relação à maior igualdade na distribuição do produto da riqueza nacional, no período Hugo Chávez essa melhor distribuição é uma realidade que foi já reconhecida pelas Nações Unidas”, sublinhou.
Porém, contrapôs, “a outra face desta política foi uma enorme dependência em relação ao petróleo que fez com que, a partir do momento em que o preço do petróleo baixou, uma série de políticas sociais demonstrassem estar assentes em pés de barro, porque estavam totalmente dependentes do valor desta matéria-prima e da venda desta matéria-prima”.
“No início do exercício de Chávez, do ponto de vista político, [a economia assente na exportação de petróleo] permitiu um aumento dos direitos sociais e uma certa erosão do que ocorria em termos de distribuição do poder na Venezuela, que é algo semelhante ao que acontece em bastantes países da América Latia, sobretudo até aos anos 1980/1990: acabou com um certo elitismo no exercício do poder naquele período, em que havia elites que concentravam uma grande parte da riqueza e do poder político e económico e uma boa parte da população que estava completamente desligada do acesso a bens públicos, do acesso a esse poder”, explicou.
Do ponto de vista internacional, foi também importante “uma autonomia da Venezuela em relação aos Estados Unidos, mas que é algo que acaba por ser comum a uma parte dos Estados latino-americanos neste período”, referiu.
“Eu direi que o legado negativo que neste momento, sobretudo depois da morte de Hugo Chávez, se tornou mais evidente – e que talvez pese mais do que os aspetos positivos – foi a transformação de uma democracia que tinha deficiências, evidentemente, como todas as democracias têm – e a Venezuela não era, de todo, uma democracia perfeita -de um sistema democrático liberal multipartidário noutro que caminha para o regime de partido único”, defendeu o analista.
“Isto acentuou-se sobretudo a partir da crise económica, que pôs em evidência as deficiências do Chavismo, e, sobretudo, pelo exercício do poder do seu sucessor, Nicolás Maduro, que não tinha a legitimidade de Hugo Chávez, o pai do regime, e que, conjugando esta ausência de legitimidade com a crise económica, acabou por levar a uma radicalização política na Venezuela, quer por parte do Governo, quer por parte da oposição”.
De acordo com o especialista, “essa lógica de confronto iniciou o seu apogeu com as eleições de dezembro de 2015, em que, de uma forma que não é contestada por praticamente ninguém, tanto é que a Assembleia chegou a tomar posse, a oposição obtém uma maioria na Assembleia Nacional”, tornando-se, a partir desse momento, “evidente que o que restava do Chavismo era democrático enquanto ganhava eleições e deixou de o ser quando começou a perder eleições”.
“A partir daí, o que nós temos é, na minha opinião, um golpe constitucional. Sei que haverá muita gente que contesta isto, porque formalmente a eleição em meados do ano passado de uma Assembleia Constituinte era permitida pela Constituição, a convocação por parte do Presidente dessa eleição era permitida, mas, em termos práticos, há uma violação material da Constituição, porque essa Assembleia Constituinte acabou por absorver ilegítima e ilegalmente os poderes da Assembleia Nacional, que tinha sido eleita em dezembro de 2015”, sustentou.
“Quando essa assembleia, que deveria estar exclusivamente concentrada na redação de uma Constituição que então, sim, do ponto de vista formal, alteraria o regime como bem entendesse, e já pondo em causa a forma como ela foi eleita – porque, na minha opinião, também aí há ilegalidades, não se cumpre a prática constitucional de uma eleição por partidos, que era seguida até aí -, começa a usurpar os poderes da assembleia que tinha sido eleita em dezembro de 2015, nós estamos perante a materialização de uma alteração na ordem constitucional”, prosseguiu.
E trata-se, na sua opinião, de “uma alteração ilegítima da ordem constitucional, em que se caminha para um sistema de partido ou de movimento único no poder, sobretudo pelas enormes dificuldades que estão a ser colocadas na possibilidade de candidaturas alternativas às eleições presidenciais [cuja convocação antecipada foi pedida por Maduro e que se realizam em abril] e no acelerar dos prazos em que, inclusivamente, se fala neste momento na eleição de uma Assembleia Nacional, quando o Presidente não tem, à partida, poderes para destituir aquela que foi eleita em 2015”.
Este cenário, “conjugado com a crise social e económica gravíssima que se vive na Venezuela, está a provocar uma mistura explosiva em que os principais prejudicados são os venezuelanos”, observou.
Outro ponto que o analista considerou importante realçar é que “a oposição, fruto deste contexto, está ela mesma radicalizada e liderada muitas vezes por determinados partidos do outro extremo [do espectro político] que pretendem mudanças de regime que são elas próprias antidemocráticas”.
“Não estão propriamente a pensar numa democracia liberal desenvolvida e com altos padrões a nível internacional; estão a pensar num regime e num certo revanchismo e na tomada de poder através desse revanchismo”, comentou.
Quanto às Forças Armadas, Filipe Vasconcelos Romão disse que “elas estão, neste momento, absolutamente controladas pelo Chavismo, estão absolutamente alinhadas com a ordem instituída”.
“Fala-se – e é voz em vários artigos da imprensa internacional – que há oficiais, generais, das Forças Armadas Venezuelanas que têm bastante peso e controlam grande parte desta economia que está cada vez mais estatizada e, nesse sentido, dentro do que é possível prever nestes tempos conturbados, não parece que, por parte das Forças Armadas, esteja em perspetiva alguma alteração violenta da ordem, o que acaba por ser positivo, porque tudo o que seja aumentar a tensão, aumentar o grau de violência e de agressividade neste contexto, acabará, mesmo que o objetivo fosse o derrube do regime autoritário, por ser muito perigoso e por conduzir a situações piores do que a que temos neste momento”, considerou o especialista.
LUSA