Em 2024, o humorista Herman José faz 70 anos e celebra 50 anos de percurso profissional, embora a sua carreira de artista tenha começado aos quatro anos, na escola alemã, onde se tornou “protagonista de todas as peças infantis”, porque já se “destacava muito dos outros miúdos”, recordou, em entrevista à agência Lusa.
Mas o que considera ser o início da carreira profissional – o momento em que ganhou “o primeiro cachê” em televisão – foi num programa de Artur Agostinho, aonde chegou pela mão de Pedro Osório.
“O programa estreava em janeiro de 74, poucos meses antes do 25 de Abril, estreou com o poeta Vitorino Nemésio e para mim foi uma emoção (…). Eu achei aquilo absolutamente maravilhoso. Aquela ideia de estar num estúdio – era feito no Maria Matos -, de sentir o cheiro das câmaras e aquela movida maravilhosa e estar perto do Artur Agostinho, foi fantástico”.
Agarrou-se a este projeto com “muitos sonhos, muitas ambições, mas muito pouca certeza de conseguir alguma coisa”, e com um ultimato dos pais, que lhe deram dois anos para se conseguir firmar como artista, caso contrário teria de seguir com estudos superiores numa área qualquer.
“O que é engraçado é que quando eu estava prestes a achar que não ia lado nenhum, sou convidado pelo Nicolau Breyner para fazer o ‘Feliz e Contente’ [em 1975] e, então, transformei-me, do dia para a noite, de um jovem com bom aspeto e algum jeito, mas sem técnica nenhuma e que andava por ali, numa vedeta, porque [nesse ano] o acontecimento principal foi a estreia do ‘Feliz e Contente’”.
No ano seguinte começaram os espetáculos e então começou “a sentir que existia como artista”.
Assume que, na altura, era um “analfabeto político”, tendo passado pela Revolução dos Cravos sem perceber bem o que estava a acontecer, e com a única preocupação de ter um pai cardíaco.
“Para mim, acabou depois por ser uma maravilha porque os músicos com que eu estava envolvido eram todos de esquerda e portanto eu entro naquela corrente de músicas de esquerda”, contou, lembrando a emoção da estreia da música “Portugal ressuscitado”, no programa de Artur Agostinho, ao lado do Fernando Tordo e da Tonicha.
Estes 50 anos de carreira foram profundamente marcados também pelos 40 anos da estreia, em 1983, de “O Tal Canal”, programa que é até hoje considerado um dos mais bem-sucedidos da televisão portuguesa.
Na sua fundação estão dois momentos-chave: um convite para fazer rádio, nomeadamente no programa “Pão com manteiga”, que lhe permitiu encontrar-se através da escrita: “Que tipo de voz, que tipo de maneira de estar, que tipo de textos?”; e um outro convite para fazer parte d’“O Passeio dos Alegres”, com Júlio Isidro, em que começou também a escrever o seu próprio material, porque não havia dinheiro para autores.
Esses anos foram “uma espécie de ‘workshop’ autoinfligido”, durante o qual foi ensaiando a escrita de textos que o divertissem, a si, e aos seus amigos, e não o que se julgava serem coisas que divertiam os outros.
“Aí é que está um bocadinho a grande diferença. Lembro-me de alguns autores de revista, que eram pessoas muito evoluídas, muito divertidas, muito contemporâneas, mas depois quando escreviam, escreviam coisas para os outros, para as camionetas que haviam de vir da província e gostar das tais coisas que eram escritas para terceiros, com um certo paternalismo”.
Essa poderá ser a fórmula do sucesso de “O Tal Canal”, admite, porque foi a primeira vez “que alguém escreveu um programa para si próprio, para chegar a casa e rir-se”.
Além disso, foi feito “com uma honestidade e uma pureza e uma quase infantilidade, que marcaram a diferença. Obviamente, muito inspirado no humor inglês, que era o único humor que eu consumia, Benny Hill, Monty Python e por aí fora”.
“Revolucionário”, na altura, foi também a decisão de incluir no programa os chamados ‘bloopers’, “aquilo que então só se via como curiosidade, separado dos programas”.
“Havia dois tabus em televisão: Se se fizesse comédia, era impensável ver-se um ator desmanchar a rir, nem pensar. Da mesma maneira que era impensável que um ator se esquecesse do texto ou tropeçasse e caísse fora da personagem. Portanto, tudo o que ia para o ar tinha de ir com profissional lisura, primeira regra. Segunda regra, não se podiam ver câmaras nunca. As câmaras eram para estar escondidas sempre, em qualquer ocasião. E eu quebro as duas regras”.
Olhando hoje, em retrospetiva, para “O Tal Canal”, Herman José reconhece que o programa estava muito “à frente do tempo”, desde logo pelo “‘timing’ que é completamente atual”, em que “a velocidade a que as coisas acontecem é precisamente a que se usa hoje em dia”.
Por outro lado, houve inovação técnica e ainda “pormenores absolutamente incríveis, como termos música ao vivo”.
Esta é uma avaliação que Herman José consegue fazer hoje em dia, mas questionado sobre que noção tinha na altura do que estava a acontecer, responde que “é o mesmo que perguntar a um maratonista o que sentiu ao quilómetro 23”.
“Primeiro estava a tentar não morrer, depois estava a tentar continuar a correr, depois estava a ver se conseguia chegar em primeiro e depois estava a tentar respirar, portanto, o maratonista não percebe nada, nem sabe sequer para onde é que passou”.
“O cansaço, o esforço, os pânicos, as angústias, as dificuldades são tantas que a pessoa não tem tempo para sentir coisa nenhuma”, acrescentou.
Algumas das personagens imortais criadas por Herman José, como Esteves ou Maximiana (do “Amor de Perdição”), vieram dos tempos da rádio, que lhes fixou a voz, e muitas ficaram para trás, presas à sua época, como a Marilú ou o Nelito.
Apenas uma “envelheceu” com o seu autor, o Esteves, que hoje em dia “está muito mais giro do que o original, mais moderado, mais engraçado, com um sotaque muito melhor”.
Entre os momentos mais marcantes da sua carreira, Herman José recorda o programa em que “fez uma brincadeira” com um convidado que lhe levaram, o antigo treinador do Porto José Maria Pedroto, na altura a figura mais importante do futebol nortenho, “sem ter bem a noção de quem era”, um momento histórico que faz hoje parte do Museu do Futebol Clube do Porto.
Da mesma forma evoca os telefonemas que recebia de Mário Soares, na altura Presidente da República, a comentar qualquer episódio, ou outro que recebeu, em 1992, para saber se queria ser condecorado.
Apenas lhe ficou um amargo de boca, “a estupidez da última ceia – no programa ‘Parabéns’ em 1994 -, em que a Igreja Católica resolveu fazer abaixo-assinados porque achava aquilo um grande atentado contra a Igreja. Depois tínhamos o líder da oposição, que era o Marcelo Rebelo de Sousa, que foi ao senhor cardeal dizer que, sim senhor, tinha toda a razão. E diz na televisão que há coisas que não se devem fazer, para não chocar a crença da maior parte dos portugueses, portanto, era esse ambiente que se vivia”.
Herman José recorda com amargura que as assinaturas chegaram às 250 mil, portanto “não era tão minoritário assim e foi um bocadinho assustador”.
Hoje, sente uma “imensa tranquilidade” e encara a vida como “o momento em que rebenta o fogo-de-artifício”.
“Ainda estou na fase de olhar para o céu e ver o fogo-de-artifício, sabendo que as canas já caíram todas e que em breve o fogo começa a acabar aos bocadinhos (…) Eu vou fazer 70 anos e qualquer dia as coisas deixam de ser o que são, mas também não podemos estar a sofrer com o que há de vir. Temos de parar, aproveitar o momento e deixarmo-nos deslumbrar pelo fogo-de-artifício, sem pensar sequer que estamos sujeitos a levar com uma cana na cabeça”.
Lusa