Questionado pela Lusa sobre eventuais dificuldades dos tribunais na aplicação da lei da amnistia para jovens que entra em vigor a 1 de setembro, o presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP), Manuel Soares, disse que eventuais dificuldades de interpretação ou falta de clareza da lei só serão notórias quando os tribunais começarem a aplicá-la.
“Quando começar a ser aplicada nos tribunais é que se vai ver se é suficientemente clara ou se suscita dúvidas de interpretação sérias. Se isso ocorrer, não será por falta de regulamentação mas sim por incúria ou incompetência do legislador. As leis devem ser bem redigidas e conter soluções claras. Sobretudo quando se trata de leis de perdão de penas e amnistia de crimes, em que se exige um especial cuidado na redação, por razões óbvias”, disse à Lusa.
Na quinta-feira a ministra da Justiça, Catarina Sarmento e Castro, disse no ‘briefing’ do Conselho de Ministros que o número de jovens abrangidos pela amnistia, criada a propósito da Jornada Mundial da Juventude (JMJ) que decorreu no início de agosto em Lisboa, só seria possível de aferir após a avaliação de processos que os tribunais já começaram a fazer.
Esse trabalho nos tribunais, admite Manuel Soares, vai atrasar outros processos, sobretudo se os funcionários judiciais retomarem, com a reabertura dos tribunais em setembro, as sucessivas greves que decorrem desde o início do ano, com fortes impactos já reconhecidos pela ministra da Justiça.
“É evidente que a lei de amnistia vai introduzir algum atraso na tramitação dos outros processos. Trata-se, no entanto, de uma situação pontual que em princípio se resolverá em dias. Agora, há um problema em aberto que pode perturbar tudo. Trata-se da greve dos funcionários judiciais, que pode parar ou atrasar a aplicação da lei”, alertou Manuel Soares.
Para o presidente da ASJP, “a chave para resolver este assunto está nas mãos da ministra da Justiça que, surpreendentemente, ou ainda não percebeu a gravidade do que está a acontecer nos tribunais, ou já percebeu e não acha muito importante”, acrescentando: “Não sei qual das alternativas é pior”.
Manuel Soares sublinhou que os tribunais reabrem em setembro “com processos acumulados” por causa das férias judiciais e das greves dos funcionários, e que “a aplicação da lei da amnistia vai exigir a análise cuidada de muitos processos, que podem atingir os milhares”, algo que “tem de ser feito com a maior rapidez possível e com muito cuidado para não haver erros”, mas que não se pode fazer “de um dia para o outro”.
“Não tenho dúvidas que os juízes dos tribunais criminais se vão ter de dedicar a tempo inteiro durante um período à análise destes processos. Se houver outro serviço que não possam fazer e não deva ficar para trás, funcionarão as regras de substituição previstas na lei. E se, mesmo assim, for de prever que essas soluções são insuficientes, então o Conselho Superior da Magistratura poderá adotar medidas de gestão especiais e temporárias. Que vai dar trabalho, vai, mas os juízes estão preparados e disponíveis, como não podia deixar de ser”, afirmou.
Manuel Soares deixa ainda alertas sobre os efeitos práticos da lei, que levará condenados a ver penas reduzidas ou perdoadas, crimes a ficar sem punição, vítimas sem os seus interesses inteiramente protegidos e presos libertados.
“É preciso que se saiba que isso resulta de uma opção política do Governo que apresentou a proposta e do parlamento que a aprovou. Não se trata de uma decisão dos tribunais, que se limitam a aplicar a lei e a executar aquela opção. A opção política é legítima e aos juízes não compete criticá-la. Mas, depois, quando descermos do texto abstrato da lei à realidade concreta da aplicação prática, se alguém libertado antecipadamente praticar outro crime ou se alguma vítima não se sentir reparada, não peçam responsabilidades à Justiça”, disse.
Na semana passada, a lei da amnistia para jovens foi publicada em Diário da República, promulgada com reparos do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que lamentou que o diploma não tenha efeitos imediatos e sem prejuízo de uma avaliação posterior “com o objetivo de poder ser alargado o seu âmbito sem restrições de idade”.
Em causa estão crimes e infrações praticados até 19 de junho por jovens entre 16 e 30 anos, determinando-se um perdão de um ano para todas as penas até oito anos de prisão.
Está ainda previsto um regime de amnistia para as contraordenações com coima máxima aplicável até 1.000 euros e as infrações penais cuja pena não seja superior a um ano de prisão ou 120 dias de pena de multa.
A lei compreende exceções ao perdão e amnistia, não beneficiando, nomeadamente, quem tiver praticado crimes de homicídio, infanticídio, violência doméstica, maus-tratos, ofensa à integridade de física grave, mutilação genital feminina, ofensa à integridade física qualificada, casamento forçado, sequestro, contra a liberdade e autodeterminação sexual, extorsão, discriminação e incitamento ao ódio e à violência, tráfico de influência, branqueamento ou corrupção.