No relatório resultante de um ano de recolha de testemunhos de abusos e que foi apresentado na segunda-feira, a comissão liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht deixa um conjunto de recomendações à hierarquia da Igreja Católica, entre as quais a revisão do segredo da confissão e a consagração, “nas normas próprias do Direito Canónico”, de todo o tipo de crimes previstos pela Lei Penal do Estado, “por forma a não criar ruído de interpretação na relação a estabelecer entre o Direito Penal e o Direito Canónico”.
Para a Comissão Independente, cuja criação foi decidida pela Conferência Episcopal Portuguesa em novembro de 2021, é também imperiosa a “sinalização atual e futura das pessoas abusadoras, por forma a evitar a continuidade de novos abusos sexuais por elas perpetrados e, dada a natureza pública dos crimes sexuais contra menores, incluir o dever moral de denúncia, por parte da Igreja, às entidades competentes”, não apenas ao que se encontra inscrito “na área do direito canónico”, mas promovendo “canais de articulação com o próprio Ministério Público”.
Defendendo a necessidade de “transformar profundamente o funcionamento institucional de algumas estruturas religiosas”, a comissão recomenda também o “lançamento de uma publicação anual sobre o lugar da criança na Igreja Católica portuguesa, tratando a matéria dos direitos, a referência destes aos direitos humanos em geral”.
A valorização da “tolerância zero”, de acordo com o preconizado pelo Papa Francisco para os abusos sexuais de crianças por membros da Igreja é, de igual forma, apontada como caminho pela comissão, reconhecendo que “os abusos acontecem e acontecerão, mas podem ser amplamente evitados a partir da noção consciente do tema e do seu risco para todos: os que abusam, os que são abusados”.
A comissão sublinha a importância da formação e recomenda “o estudo, por parte de toda a hierarquia da Igreja, dos direitos da criança, (…) a partir do texto da Convenção das Nações Unidas, como a sua divulgação em todas as estruturas, sobretudo naquelas que lidam com crianças e jovens”.
Uma “análise periódica da verdadeira vocação religiosa e uma avaliação psicológica externa em caso de dúvidas vocacionais e/ou de comportamentos que indiciem risco no campo dos abusos sexuais de menores” é, também, uma medida sugerida, a par do "controlo dos antecedentes criminais dos membros da Igreja, ou de quem nela exerce funções, vocacionados para atuar junto de crianças”.
É considerado necessário, também, que se verifique “uma inflexão no ponto de vista em torno da definição do valor ou bem violado pelo abuso. Se (…) algum caminho foi percorrido pela Igreja nesse sentido, o que é certo é que a pessoa da vítima e os efeitos por ela sofridos tendem a surgir desvalorizados (…). No fundo, a Igreja surge como a principal vítima dos abusos sexuais, cujos efeitos, para lá disso, atingem também a pessoa concreta da vítima”.
A materialização física de um “pedido de perdão” às vítimas, nomeadamente “em algo que simbolicamente perdure no tempo enquanto espaço de evocação das pessoas vítimas, católicas ou não católicas (ou, simplesmente, já não crentes), dos abusos sobre elas praticados e do firme compromisso de um esforço efetivo pela sua não-repetição” é também apontada como necessária, a par da criação de uma linha telefónica, “aberta sete dias por semana, e de um endereço eletrónico disponível, gerido por equipa multidisciplinar (…) que garanta o anonimato de todos os que quiserem contactar, dando continuidade de referenciação de casos e estruturação do apoio necessário para todos os que o quiserem fazer agora ou no futuro”.
A Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais na Igreja Católica em Portugal iniciou a recolha de testemunhos de vítimas em 11 de janeiro de 2022, tendo validado 512 denúncias das 564 recebidas, o que permitiu a extrapolação para a existência de um número mínimo de 4.815 vítimas nos últimos 72 anos.
A Conferência Episcopal Portuguesa vai tomar posição sobre o relatório, de quase 500 páginas, numa Assembleia Plenária agendada para 3 de março, em Fátima.