“O rap é tudo ao mesmo tempo: um catalisador e um espaço embrionário [do movimento antirracista]. Chega nos anos 1980 e vai-se alicerçando entre a jovem comunidade negra da periferia de Lisboa. Tem um papel de consciencialização das questões raciais, mas também se assume como um espaço de denúncia, onde os jovens negros podiam ter a voz que o Estado não lhes dava”, afirmou à agência Lusa Pedro Varela, que concluiu uma tese de doutoramento na Universidade de Coimbra que estuda o antirracismo em Portugal desde o início do século XX.
Ao longo da investigação, Pedro Varela dividiu o antirracismo no país em três momentos: o movimento negro entre 1911 e 1933 com publicação de jornais e participação em congressos pan-africanistas; o papel da poesia e da literatura entre 1942 e 1963 numa geração marcada pelo nacionalismo africano e lutas independentistas; e, por último, o movimento que emergiu nos anos 1990 e que se estende até hoje, com o surgimento de organizações antirracistas, associações de imigrantes e o rap.
Pedro Varela não aponta para uma data ou ano para o arranque do movimento antirracista que hoje se conhece, mas entende o nascimento da SOS Racismo (a partir da conexão de setores do Partido Socialista Revolucionário e da Juventude Comunista Portuguesa), nos anos 1990, como um momento central.
“O movimento que hoje conhecemos já se vinha a formar nos anos 1980, mas o aparecimento da SOS Racismo é fundamental, porque torna-se uma voz pública na época e que dura até hoje e que vai conectar diferentes setores da sociedade”, apontou.
No arranque da década de 1990, marcado pelo fim do apartheid na África do Sul e pelos motins antirracistas de 1992 nos Estados Unidos, surgem várias associações antirracistas, como a SOS Racismo, Frente Anti-Racista ou Movimento Anti-racista, mas que eram predominantemente brancas.
Essa década é também marcada pelo homicídio do cidadão de origem cabo-verdiana Alcindo Monteiro, em 1995, por membros da extrema-direita portuguesa, um crime de ódio que ganha repercussões mediáticas e que espoleta as maiores manifestações contra o racismo até à altura, no país, com milhares de pessoas a juntarem-se nas ruas de Lisboa e do Porto.
Se o primeiro contacto com a cultura do hip-hop remonta aos anos 1980, mais centrado no breakdance face ao fenómeno de filmes como “Breakin’” e “Beat Street”, é nos anos 90 que o género ganha força no país, assumindo-se desde início como uma plataforma de denúncia do racismo e da violência policial, constatou.
No início dessa década, o movimento rap português já se apresentava em festivais no Incrível Almadense e na Voz do Operário e, em 1992, a imprensa portuguesa “descobre” o estilo, elegendo, posteriormente, 1995 como “o ano do rap em Portugal”, com um ‘boom’ de concertos, maior circulação nas rádios e atenção por parte da comunicação social.
Entre 1994 e 1995, surgem artistas e grupos como General D, Da Weasel, Black Company, Mind da Gap, assim como a compilação “Rapública”, tida como um marco no rap português, onde figuram nomes como Boss AC, Family, Líderes da Nova Mensagem ou Zona Dread.
A denúncia está presente em quase todos os trabalhos iniciais. Da Weasel, em “Todagente”, afirmavam: “Toda a gente grita: Todos diferentes, todos iguais! Mas se calhar há uns quantos bacanos a mais”.
“A luz da revolta está acesa/ E ilumina a cidade/ Com idiotas disfarçados que abusam da autoridade/ Peões da falsa tolerância/ Enquanto alguém na piscina comanda o povo à distância”, criticava, por seu turno, Boss AC, no tema “A Verdade”, na coletânea “Rapública”.
Os Zona Dread, também na compilação “Rapública”, constatavam que “o racismo está nas ruas de Lisboa” e “o Governo finge que tudo tá na boa”, e General D, em “Portukkkal é um erro”, denunciava uma nação cujos pilares assentavam no racismo e etnocentrismo, criticando também a polícia, que trata o seu “irmão como um animal”, numa música incluída no EP “Portukkal”, de 1994, que, para Pedro Varela, “é um hino à africanidade e negritude”.
Nas entrevistas realizadas por Pedro Varela para a sua tese, Lúcia Furtado, líder da organização Femafro, e António Tonga, ativista da Consciência Negra, realçam a importância do rap e da forma como se falava de racismo, identidade e violência policial, de uma forma “crua e dura”.
“O nosso movimento, mesmo agora quando temos três mulheres eleitas deputadas [entrevista feita em 2019], continua a ser um movimento sem a inserção social que deveria ter. […] O rap preenche esse papel muito bem”, notou António Tonga, considerando que aquele género musical cria um elo entre o movimento de 1990 e o atual.
Foi num ambiente de “racismo institucional e violência policial” que o ativismo de jovens negros na periferia se formou, muitas das vezes ligado ao rap e a associações de bairros, notou Pedro Varela.
Segundo o investigador, para além de o rap se assumir como a voz das periferias (no Porto, de uma periferia branca e pobre, em Lisboa, de uma periferia racializada), acaba também por assumir um papel na consciencialização do que era o racismo para a população jovem branca.
Ao mesmo tempo, lugares como Miratejo, entendido como espaço onde o rap em Portugal nasceu, não eram apenas os locais onde se juntavam para cantar, mas também para conviver, com ideias e músicas a circular entre bairros.
Na viragem do século, esses jovens, muitos deles já nascidos em Portugal, começaram também a formar associações já maioritariamente negras, como é o caso da Khapaz, formada na Arrentela (Seixal), em 2000, que tinha como um dos seus fundadores o rapper Chullage.
Perante o estudo, Pedro Varela considerou que o rap é também uma forma extremamente rica de se olhar para a história recente de Portugal, a partir de uma perspetiva de “pessoas que são segregadas e oprimidas”.
“É uma história alicerçada nas classes populares, que relatam aquilo que são as desigualdades sociais, o que é a pobreza. O rap português é um arquivo brutal, porque é um estilo de música focado nas letras, na palavra, e temos milhares de pessoas que o fazem. Acho que se deveria olhar para o rap como o Giacometti olhou para a música tradicional portuguesa. Porque um arquivo do rap em Portugal é um arquivo das histórias que são totalmente invisibilizadas”, defendeu.
Lusa