Nas alegações finais do julgamento, Ricardo Sá Fernandes manifestou discordância relativamente à posição da procuradora do Ministério Público que apenas pediu a condenação do instrutor Ricardo Rodrigues, do médico e capitão Miguel Domingues e do comandante da prova, tenente-coronel Mário Maia, por abuso de autoridade em ofensa à integridade física, excluindo de responsabilidades criminais o comandante do regimento e de outros militares e instrutores acusados no processo.
"A nossa posição é divergente da posição do Ministério Público (MP)", disse o advogado da família das vítimas, considerando que o "MP absolveu a forma como a prova foi executada" pelo comandante da prova e pelos instrutores e na presença do comandante do regimento.
No entender de Ricardo Sá Fernandes, este julgamento "deve servir para modelar a execução da prova zero", por forma a que "o caso não se repita", sublinhando que, apesar da natural dureza desta prova dos Comandos, há "vários limites que não se podem ultrapassar", como, por exemplo, "as pessoas [instruendos] com castigo serem atirados às silvas".
"Isso é absolutamente gratuito. Isso não é admissível", enfatizou o advogado, observando que tais práticas não podem ser recorrentes e admitidas numa instituição militar com o prestígio dos Comandos.
Ricardo Sá Fernandes pediu a condenação de oito militares que interagiram com os instruendos Dylan da Silva e Hugo Abreu, mas não exclui que outros dos militares acusados possam vir também a ser condenados por situações que envolveram outros recrutas que tiveram que ser internados (mas não morreram). Foi contudo perentório em pedir a absolvição do enfermeiro que esteve na prova zero, seguindo neste caso particular a mesma posição do MP em julgamento.
O advogado foi muito incisivo quanto à responsabilidade do comandante da prova, comandante do regimento e do médico Miguel Domingues, notando que, à semelhança do que diz a acusação, a prova devia ter sido suspensa cerca das 14:00 quando estavam cerca de 40 graus de temperatura, havia instruendos a cambalear, outros a vomitar e outros a desistir, não havendo na tenda médica refrigeração, soro gelado nem condições para acolher tantos recrutas debilitados e desidratados devido ao racionamento de água.
Segundo Ricardo Sá Fernandes, o médico "não atuou atempadamente" por forma a evitar que os instruendos "corressem riscos" e até obrigou alguns deles (não Dylan e Hugo Abreu) a "rastejar" até à ambulância, sem qualquer tipo de ajuda.
Para o advogado, a culpa não pode ser agora dos cabos e devem ser assacadas responsabilidades às chefias militares que dirigiram e executaram a prova zero e que, perante o "descalabro do que estava a acontecer", num dia quente (40º graus) e com desmaios, não ordenaram a imediata suspensão da prova zero.
Assim, por omissão e ação, o advogado da família de Dylan e Hugo Abreu pediu a condenação de oito militares, incluindo Cristiano Monteiro, Hugo Pereira, Miguel Almeida, Pedro Fernandes e Gonçalo Fulgêncio, que alegadamente interagiram com as duas vítimas mortais.
À saída do tribunal, Ricardo Sá Fernandes mostrou-se convicto de que o coletivo de juízes, que integra um militar (coronel), "fará justiça", justificando que uma "prova militar não pode ter componentes que ponham em risco [a vida]" dos instruendos, como aconteceu em 04 de setembro de 2016, em Alcochete, distrito de Setúbal.
"Não se podem atirar pessoas de castigo para molhos de silvas para ficarem todas picadas apenas para as castigar, como se fossem sacos de batatas", criticou.
No final das alegações do advogado, a procuradora de julgamento anunciou que pretende replicar à argumentação de Ricardo Sá Fernandes, após ouvir críticas à forma como supostamente a estrutura acusatória foi alterada pelo MP em sede de julgamento.
Em anteriores alegações, o MP deu como provado que o instrutor Ricardo Rodrigues cometeu abuso de autoridade com ofensa à integridade física, com perigo de vida, pedindo que o seu comportamento seja punido com pena de prisão até 10 anos.
A procuradora Isabel Lima considerou que cabia ao instrutor Ricardo Rodrigues "zelar pela segurança e saúde dos instruendos", mas que "não agiu" dessa forma, "potenciando o perigo para a vida do instruendo [Hugo Abreu]".
Quanto ao médico Miguel Domingues, também acusado de abuso de autoridade com ofensa à integridade física, por omissão e não por ação, o MP pediu uma condenação a cinco anos de prisão, pena passível de ser suspensa na execução.
Quanto ao comandante responsável pela prova zero, Mário Maia, a procuradora pediu a sua condenação a uma pena de dois anos de prisão, suspensa por igual período.
Igual pena suspensa de dois anos de prisão foi pedida para os arguidos Pedro Nelson Morais, Pedro Fernandes e Lenate Inácio. Não foi pedida condenação para os restantes arguidos.
Em causa no processo estão os acontecimentos ocorridos durante a primeira prova do 127.º curso de Comandos em que morreram os recrutas Dylan da Silva e Hugo Abreu, tendo o MP acusado 19 militares, por cerca de 500 crimes ligados aos atos praticados na instrução.
Dylan da Silva e Hugo Abreu, ambos com 20 anos, morreram e outros instruendos sofreram lesões graves e tiveram de ser internados durante a denominada "prova zero".
Oito oficiais, oito sargentos e três praças, todos militares do Exército do Regimento de Comandos, a maioria instrutores, foram acusados de abuso de autoridade por ofensa à integridade física.
Segundo a acusação, os arguidos atuaram com "manifesto desprezo pelas consequências gravosas que provocaram nos ofendidos". O julgamento dura há quase dois anos e meio.