O mestre Manuel Cargaleiro – para quem a cor e a luz eram “um prazer” – afirmou várias vezes que se sentia ceramista mesmo quando pintava a óleo. Não conseguia imaginar uma coisa sem a outra, uma vez que as duas práticas artísticas se influenciavam mutuamente.
“Quando pinto a óleo penso na cerâmica, e quando faço cerâmica, penso na pintura”, disse o mestre conhecido por dominar desde cedo a técnica do azulejo e cuja colaboração era frequentemente pedida por outros artistas que o admiravam pela perícia e originalidade.
Manuel Alves Cargaleiro nasceu em Chão das Servas, Vila Velha de Ródão, a 16 de março de 1927, e passou a infância numa olaria no Monte da Caparica, no concelho de Almada, para onde os pais se mudaram quando tinha apenas dois anos de idade.
Nessa olaria começou a fazer experiências com vidros e tinta, e adquiriu o gosto pela cerâmica, mas a sua criatividade veio a estender-se também a outros suportes, como a pintura e, além dela, a tapeçaria.
Apesar da paixão precoce pelas artes, estudou durante três anos Ciências Geográficas e Naturais na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, porque era um grande apreciador da natureza, como confessou, e só depois, em 1949, ingressou na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa.
“Eu sou o pintor das cores. Eu vivo para as cores, e isso é o resultado de eu olhar muito para a natureza”, afirmava.
As suas primeiras pinturas abstratas, intituladas “Microscopic Compositions”, surgiram mesmo da observação dos tecidos vegetais que o microscópio reproduzia, suscitando uma inspiração direta do mundo natural, ao seu redor.
Em 1952 realizou a primeira exposição individual, no Secretariado Nacional de Informação, em Lisboa, e, dois anos depois, quando era professor de cerâmica na Escola Secundária António Arroio, em Lisboa, surgiu a oportunidade de expor as suas peças na Galeria de Março, que funcionou na capital portuguesa entre 1952 e 1954.
No mesmo ano, apresentou as suas pinturas iniciais a óleo no Primeiro Salão de Arte Abstrata, conquistou o Prémio Nacional de Cerâmica e viajou pela primeira vez para Paris, onde conheceu a pintora Maria Helena Vieira da Silva, de quem ficaria amigo, e com quem viria a trabalhar intensamente, cerca de três décadas mais tarde, no processo de instalação dos painéis de azulejo da artista nas estações da Cidade Universitária e do Rato, do Metro de Lisboa, quando concebia os seus próprios painéis para a estação do Colégio Militar.
A sua obra foi fortemente inspirada no azulejo tradicional português, e também influenciada inicialmente pelo pintor e ceramista Lino António, o modernista que concebeu os vitrais da Aula Magna da Universidade de Lisboa e os frescos do átrio da Biblioteca Nacional de Portugal. O racionalismo e a sobriedade da arte francesa, das quais Cargaleiro posteriormente se afastou através do uso e intensa exploração da cor, também marcaram o seu ponto de partida.
Essa ampla pesquisa da cor, com “grande prazer”, como sempre dizia, fez com que alguns especialistas em arte lhe chamassem “o artista feliz”. Até aos 95 anos continuou a trabalhar no ateliê, quase diariamente: “Passo horas nisto, e esqueço-me que estou a trabalhar”, dizia.
Em 1955, Manuel Cargaleiro foi agraciado com o diploma de honra da Academia Internacional de Cerâmica, no Festival Internacional de Cerâmica de Cannes, em França.
Foi convidado a conceber os painéis de azulejo para o Jardim Municipal de Almada e para a fachada da Igreja de Moscavide e, até ao final dessa década, receberia duas bolsas de estudo na área da cerâmica, respetivamente em Faenza, Itália, e em Gien, na França.
Entretanto, fixou residência definitiva na capital francesa, onde viria a estabelecer o seu atelier, expandido a sua presença internacional. Até ao final da década de 1970, realizou exposições individuais em Lisboa, Paris, Tóquio, Milão, Lausanne, no Porto, em diferentes cidades do Brasil. Foi também convidado para mostras coletivas em Almada, Genebra, Osaka, Seul.
Colaborou com poetas, nomeadamente Armand Guibert e Victor Ferreira, cujos poemas foram ilustrados pelo artista.
Foi convidado pelo ministério francês da Cultura a conceber painéis cerâmicos para três escolas no país que o acolhera. Assim o fez.
Nos anos 1980 começou a explorar a tapeçaria, tendo sido convidado pelo Governo português a conceber uma dessas obras para o novo edifício na Organização Internacional do Trabalho, em Genebra.
A partir da década de 1990, predominariam na sua obra os padrões aglomerados e cromaticamente intensos onde continuaria a ser evocado o azulejo português, que tanto determinou o seu trabalho.
Em Castelo Branco, viria a ser criada a Fundação Manuel Cargaleiro, em 1990, com o objetivo de criar um museu dedicado à sua obra. Assim aconteceu, em 2005, primeiro no edifício histórico Solar dos Cavaleiros, mais tarde expandindo-se para o “edifício contemporâneo”.
Cerca de uma década mais tarde foi inaugurada no Seixal a Oficina de Artes Manuel Cargaleiro, num projeto arquitetónico de Álvaro Siza, com objetivo de promover a arte contemporânea, a obra do mestre Manuel Cargaleiro e as coleções da sua fundação, quer através de temporárias, mas sobretudo através da divulgação da arte e do trabalho com jovens artistas, dando corpo à definição implícita na designação de Oficina.
A obtenção do primeiro prémio do concurso internacional “Viaggio attraverso la Ceramica”, e a ligação de Manuel Cargaleiro à localidade de Vietri Sul Mare, em Itália, surgem num contexto de aprofundamento de ligações com o meio artístico italiano.
Em 2004, estas ligações impulsionaram a criação da Fondazione Museo Artistico Industriale Manuel Cargaleiro, um centro de produção e investigação na área da cerâmica, ao qual o artista doou 150 obras.
Em 2017, no exato dia do seu 90.º aniversário, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, condecorou Manuel Cargaleiro com a Grã-Cruz da Ordem do Infante Dom Henrique, classificando-o, de “artista completo”. Em fevereiro de 2023 recebeu a Grã-Cruz da Ordem de Camões.
A Câmara de Castelo Branco atribuiu-lhe a medalha de ouro da cidade em 2022, e, nesse ano, o artista recebeu também o doutoramento ‘honoris causa’ pela Universidade da Beira Interior (UBI), sediada na Covilhã, cidade que faz parte da região onde nasceu, um prémio ao qual atribuiu, na altura, um significado “único”.
No mesmo ano, a Câmara Municipal de Lisboa homenageou-o com a Medalha de Honra da Cidade.
Nesse ano, o mestre doou cerca de 1.900 peças de arte em cerâmica, avaliadas em 1,2 milhões de euros, à sua Fundação, sediada em Castelo Branco, e que detém um enorme acervo, reunido pelo mestre ao longo de 70 anos, entre obras suas e de outros artistas.
O ceramista recebeu, em Paris, em 2019, a medalha de Mérito Cultural do Governo português e a Medalha Grand Vermeil, a mais alta condecoração da capital francesa.
Na altura, foi também inaugurada a ampliação da estação de metro de Champs Elysées-Clémenceau, com novas obras de Manuel Cargaleiro, depois de originalmente concebida e totalmente decorada pelo artista português, em 1995, incluindo o painel em azulejo “Paris-Lisbonne”.
No último ano teve patente as exposições “Eu Sou… Cargaleiro”, no Mosteiro de Ancede – Centro Cultural de Baião, no distrito do Porto, uma mostra de pintura na Casa Museu Teixeira Lopes – Galerias Diogo de Macedo, em Vila Nova de Gaia, intitulada “Cargaleiro, Pintar a Luz Viver a Cor”, e uma exposição de gravura no Fórum Cultural de Ermesinde, em Valongo, de nome “A essência da cor”. Este ano levou obras nunca expostas à sua oficina, no Seixal.
Reuniu-se ainda a Vhils (Alexandre Farto) na criação conjunta da obra “Mensagem”, destinada a exposição no Museu Cargaleiro, em Castelo Branco.
No passado mês de abril doou à sua terra natal, Vila Velha de Ródão, uma tela alusiva aos 50 anos do 25 de Abril, a que chamou “Festa da Gratidão”.
Gratidão é também a palavra usada pela sua mulher para descrever a vida do mestre e o seu reconhecimento em Portugal. Em declarações à agência Lusa, Isabel Brito da Mana lembrou hoje o Museu Cargaleiro, em Castelo Branco, e a Oficina de Artes, no Seixal, sublinhando como a vida e a arte de Manuel Cargaleiro se conjugaram e cumpriram. A vida de um dos mais cosmopolitas criadores do arte portuguesa, reconhecido através do mundo inteiro e presente nas principais coleções internacionais, que nunca esqueceu as suas ligações à terra natal, no distrito de Castelo Branco, e à margem Sul do Tejo, onde cresceu.
Em entrevista à agência Lusa, em setembro do ano passado, o mestre disse entender que havia “duas correntes no mundo: uma positiva e outra negativa”.
“Há os artistas que pensam que não há nada a fazer, e descrevem o destrutivo, por exemplo o [pintor anglo-irlandês Francis] Bacon. Tem uma pintura triste, violenta, agressiva. E [o pintor e ceramista francês de origem bielorrussa Marc] Chagall, que tem uma pintura de esperança, de beleza, de mensagem. Eu coloco-me deste lado. Eu gosto de criar algo que dê força, que anime e dê esperança.”
E concluiu: “Eu pego nos pincéis e começo a pintar e não sei o que vai acontecer. Há tanta coisa que eu gostaria de fazer.”
Lusa