Médica do Instituto de Higiene e Medicina Tropical (IHMT), em Lisboa, e líder da equipa que identificou Angola como o segundo país onde o Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH) foi detetado, em 1924, a seguir à República Democrática do Congo, onde surgiu em 1906, Ana Abecassis acredita que as preocupações com este tipo de agentes vieram para ficar.
E a culpa está identificada: “Enquanto nós continuarmos a destruir florestas, sabemos que há um aumento das ameaças por doenças infecciosas emergentes, porque nós estamos a desflorestar, a urbanizar locais onde os animais tinham o seu habitat e, portanto, com esta proximidade dos animais, corremos o risco de que haja transmissão de doenças para os humanos”.
Os vírus surgem na linha da frente desta ameaça, o que mais não é do que uma manifestação do que os especialistas chamam de “one health” (a saúde das pessoas intimamente ligada à saúde dos animais e ao ambiente comum).
“O que nós sabemos é que há uma série de doenças que nos ameaçam muito e todos eles são vírus”, afirmou à agência Lusa, recordando que a Organização Mundial da Saúde (OMS) tem uma lista com as doenças infecciosas emergentes, sendo que as nove grandes ameaças identificadas “são todas vírus e vírus de evolução rápida”.
Nos últimos anos, afirmou, “se olharmos para a história das grandes epidemias ou das grandes ameaças, para além da gripe – que é constantemente um problema, ou um potencial problema – tivemos ébola, ou antes, temos ébola".
"Tivemos Zika, que também é muito preocupante e que felizmente desapareceu, não sabemos muito bem como, (…) agora temos o SARS-CoV-2 e há mais tempo [2002] tivemos o SARS-CoV”, continuou.
“Se nós temos um potencial para a passagem destes vírus dos animais para os humanos, pela forma como nós vivemos e como vamos ocupando o habitat dos animais, e com o contacto próximo com estes animais – como os mercados na China – tudo isso contribui” para que essa passagem aconteça.
Por outro lado, sublinhou, “a partir do momento em que há o potencial do vírus passar [do animal] para o humano, temos o potencial de ele rapidamente se espalhar pelo globo, porque estamos sempre a viajar de um lado para o outro”.
“Temos toda uma série de fatores que, juntos, contribuem para que a ameaça seja muito grande e, sim, eu acredito que nos próximos anos iremos passar por alguns sustos ou neste caso, que não é um susto, pois passou mesmo a ser uma realidade que é a que estamos a viver” com a covid-19.
Sem arriscar soluções, Ana Abecassis tem uma certeza: “O que eu acho é que nós não podemos viver desta forma. A questão não são só os vírus, é tudo. Temos de voltar para trás, independentemente de os vírus entenderem ou não”.
A especialista em saúde pública e em agentes como o VIH alertou para algumas espécies em particular que estão “carregadinhas de vírus prontos para passar para o humano”.
“É só terem a oportunidade”, avisou, exemplificando com os morcegos, uma espécie que está cheia de vírus, como o coronavírus e o Ébola, mas não só: “Os mosquitos também são um problema, porque o aquecimento global faz com que haja a expansão do território que eles ocupam”.
A multiplicação dos mosquitos aumenta o risco de contágio com a espécie, nomeadamente o mosquito Aedes, transmissor dos vírus da dengue, zika e chikungunya.
“Eles só existem se tiverem determinadas condições ambientais e, portanto, a sua expansão tem a ver com o aquecimento global”, referiu.
“Nós tínhamos florestas em que os animais estavam livremente e onde nós não estávamos. Neste momento, essas florestas escasseiam e eles têm de ir para algum lado e isso acontece sobretudo na Ásia a na Amazónia”, prosseguiu.
Ana Abecassis indicou que, na maior parte das vezes, os animais portadores das doenças não ficam doentes e que quando os vírus passam para o homem é que podem tornar-se patogénicos.
Em todo este processo, recordou, são necessários dois passos: a transmissão do animal para o homem e a transmissão do homem para o homem.
A este propósito, apontou o vírus MERS, um “primo do SARS-CoV-2", cujo reservatório é o camelo.
"Sabemos que existem casos de transmissão animal-humano, com uma taxa de mortalidade maior até do que o SARS-CoV-2, só que depois a transmissão humana a humano ainda não acontece. É outra ameaça”, disse.