Quando se completam quase dois meses desde que o novo Coronavírus provocou mudanças nunca vistas na Europa, a Lusa perguntou a três especialistas o que de bom se pode retirar da crise atual e a “descoberta” do teletrabalho foi referida por todos.
“As empresas perceberam que podem trabalhar com esquemas remotos. Isso evitou deslocações, evitou-se a emissão de gases com efeito de estufa, e teve impactos positivos nos custos das empresas”, disse à Agência Lusa a investigadora e professora Júlia Seixas, presidente do departamento de Ciências e Engenharia do Ambiente da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa.
A investigadora dá mesmo exemplos de reuniões internacionais em que participou nos últimos dias, a partir de casa, evitando longas viagens de avião. “E funcionou”, afirma.
“Tinha uma reunião de Academias de Ciências europeias na Alemanha e vamos faze-la digitalmente”. E já não é Júlia Seixas quem o diz, é Filipe Duarte Santos, professor e especialista em ambiente e alterações climáticas. “A teleconferência era uma ferramenta que usava de vez em quando e agora uso mais”. E também já não é Filipe Duarte Santos quem o diz, é João Joanaz de Melo, engenheiro do Ambiente, especialista e investigador em áreas como ecodesign ou eficiência energética.
Os três, ligados ao ambiente, defendem que o momento criado pelo novo Coronavírus deve servir para a humanidade repensar a forma como usa a natureza e não voltar ao “business as usual”.
É Júlia Seixas quem primeiro utiliza a expressão, que literalmente quer dizer “negócios como sempre”. A propósito do retomar da atividade económica alerta que “não faz sentido despejar milhões” no “business as usual” mas sim aproveitar para se “reinventar a recuperação económica”.
Coordenadora das áreas de energia e clima do Centro de Investigação Ambiental e Sustentabilidade da faculdade, Júlia Seixas identifica três áreas sobre as quais a Covid-19, a doença provocada pelo novo coronavírus, trouxe ensinamentos.
“O facto de estarmos fechados travou o nosso consumo em termos globais, à exceção da alimentação. Há todo um nível de consumo que fazemos e sobre o qual não nos questionamos. E agora temos oportunidade para perceber que itens nos trouxeram infelicidade por não os consumirmos. Provavelmente concluímos que não eram assim tão necessários”.
E há outro ensinamento, nas palavras da investigadora. O confinamento obrigou as pessoas a fazer compras nas mercearias de bairro, a dar mais importância aos produtos portugueses, a valorizar as cadeias curtas de abastecimento.
Júlia Seixas volta depois às teleconferências, às reuniões internacionais feitas assim. “Na semana passada participei numa com 240 pessoas e funcionou”, conta, salientando a poupança de recursos, os hotéis que não se pagam, as viagens que não se fazem.
Filipe Duarte Santos concorda e diz que “o aumento do teletrabalho pode ajudar na questão ambiental”.
Mas deixa outros alertas. A humanidade, afirma, está a viver cinco crises, a das desigualdades, que se agravam, a da dívida pública e privada, que continua a aumentar, a do ambiente, a das alterações climáticas e a da Covid-19.
“É muito provável que se consiga uma vacina para a Covid-19 e a partir daí podemos por esta crise para trás. Para as outras não há vacina”, diz, salientando que as crises do ambiente e das alterações climáticas são “insidiosas” e que “o mundo não se está a preparar para as enfrentar”.
Até agora, considera, o mundo tem um modelo de desenvolvimento muito agressivo para o ambiente. As crises do ambiente e das alterações climáticas vão crescendo, há milhares de mortos todos os anos devido à má qualidade do ar, há emissões muito elevadas de gases com efeito de estufa. E não é a crise da Covid-19 que vai resolver a crise climática.
São frases de Filipe Duarte Santos, que admite que a Covid-19 trouxe como positiva uma redução de emissões de dióxido de carbono de 6% em 2020. Mas adianta que era preciso que essa redução fosse assim todos os anos, só que “a indústria petrolífera não deixa”.
Portanto, conclui, é possível que se volte ao “business as usual”, ainda que vá haver “mais pessoas convencidas de que é preciso mudar de rumo”.
“Muitas coisas vão mudar no sentido de tornar as pessoas mais conscientes destas cinco crises”, mas talvez não sejam suficientes para mudar o mundo, afirma.
Se não se muda o mundo, ao menos o que se aprendeu? Joanaz de Melo responde que o vírus é o "fruto da nossa ganância e estupidez", é o resultado da nossa relação com a natureza, essa era a lição mais importante e ainda não a aprendemos.
“Aprendemos como trabalhar de forma mais eficiente, à distancia, com serviços partilhados, com teleconferências. Há empresas que se reconverteram. É uma aprendizagem que não vai desaparecer e deve ser continuada”.
Mas há, continua, uma crise económica e social, há a necessidade de voltar a dar emprego a centenas de milhares de pessoas. E há o risco de se esquecer “tudo o resto”.
Diz o professor que não se pode esquecer que a pandemia teve origem em mercados de animais vivos sem condições, que “são uma consequência direta do desprezo do ser humano pela natureza e da ignorância total sobre ela”.
“Não sabemos onde vai aparecer o próximo vírus porque os desacatos sobre a natureza existem em muitos sítios. É como os temporais associados às alterações climáticas, um dia chegam cá. Não nos podemos dar ao luxo de ignorar estes avisos”, afirma João Joanaz de Melo.
E agora, com a Covid-19, não se pode ignorar a agenda ambiental, a aposta nas energias renováveis, nas ecotaxas, nos transportes públicos sustentáveis, na economia circular, na proteção dos espaços naturais. “São temas tão atuais ou mais do que eram antes”.
Agora que já se fala da recuperação, Joanaz de Melo alerta que áreas como o ecoturismo ou a eficiência energética dão emprego, que a requalificação urbana e a economia verde empregam mais pessoas que as grandes obras públicas, e que um crescimento que implique mais poluição é um mau crescimento.
É por tudo isso que deixa mais um ensinamento, porventura o maior que a Covid-19 deixa: Se tratarmos mal a natureza ela trata-nos mal.
C/Lusa