“A pandemia interferiu, e ainda interfere, com todos os centros de saúde, numas áreas de forma mais comum e noutras mais acentuada nalguns aspetos, de acordo com as realidades locais”, explicou à Lusa o presidente do Conselho Regional Sul da Ordem dos Médicos, Alexandre Valentim Lourenço.
O responsável disse ainda que, em muitos centros de saúde, “não houve sequer ainda a retoma da normalidade, quanto mais a recuperação do que ficou em atraso”.
Alexandre Lourenço lembrou que os centros de saúde receberam orientações diferentes das administrações regionais de saúde para a resposta à pandemia, “sem coerência”.
“Numas situações deram autonomia ao centro de saúde para se adaptar e dar resposta, noutras não. Muitos tinham de obedecer a regras que muitas vezes não tinham aplicação lógica nem prática”, apontou.
Sublinhou que os médicos e enfermeiros dos centros de saúde encararam a vacinação Covid-19 como “uma missão nacional”, mas que “não estavam à espera de serem requisitados de forma tão brutal como foram”.
“Havia intenção de os centros de vacinação recorrerem à contratação de médicos e enfermeiros voluntários (…), mas na maior parte dos sítios, para poupar dinheiro, os médicos de família foram incluídos em sistemas rotativos para vacinação, uma missão que encaram como nobre e necessária, mas que lhes retira tempo para os seus doentes”, explicou.
O presidente do Conselho Regional Sul da Ordem dos Médicos disse ainda que nalguns centros de saúde a situação é mais complicada.
“Em centros de saúde com três ou quatro médicos, deslocar todos os dias um para vacinação deixa um terço ou metade dos utentes sem médico”, disse.
Alexandre Lourenço apontou também os atrasos nos rastreios que dependem dos cuidados de saúde primários, dizendo que, no caso do cancro do colo do útero, já têm “um ano e meio de atraso”.
O especialista lembrou que nos rastreios que não dependem do funcionamento do centro de saúde, como é o caso do cancro da mama, que é baseado em ecografias que podem ser feitas fora do centro de saúde, os médicos fazem as prescrições e as pessoas estão a retomar, mas que, por exemplo, no rastreio do colo do útero, “as citologias não estão a ser feitas”.
“Os rastreios, muitas vezes, eram feitos por médicos com auxílio de enfermeiros e não estão uns nem outros. (…) O do cancro do colo do útero é paradigmático, não há rastreios de forma sistemática. Estão a ser feitos de forma esporádica e oportunista, ou seja, o doente aparece com queixas e faz-se o rastreio”, explicou.
“Antigamente era ao contrário, chamavam-se 100 doentes para fazer 100 rastreios. E agora não se chamam doentes”, acrescentou.
O médico referiu que “há pequenas diferenças”, mas que os rastreios “estão atrasados em todas as regiões”, que o planeamento familiar “foi reduzido” e que as consultas de saúde materna e pediátricas (grávidas e crianças) se mantiveram, mas que “houve normas para se reduzir para as idades chave”.
Ainda a propósito das tarefas que sobrecarregaram os profissionais dos centros de saúde na resposta à pandemia, Alexandre Lourenço lembrou: “Os médicos continuam a fazer as escalas dos ADR [centros de assistência à doença respiratória]. No pico da pandemia, em janeiro ou fevereiro, ainda não havia muita vacinação na comunidade, mas os médicos estavam assoberbados com o ‘trace-Covid’ [contactos diários com doentes infetados] e os ADR. Quando o ‘trace Covid’ e os ADR melhoraram, começaram a ser requisitados para a vacinação”.
Defendeu que o ideal seria colocar nos centros de vacinação médicos que se reformaram e que se estão a voluntariar: “Se conseguirmos ir buscar médicos que estão relativamente livres e que podem fazer os turnos nos centros de vacinação conseguimos intensificar a vacinação sem prejudicar a assistência dos utentes dos centros de saúde”.
“O doente que tem uma diabetes, ou uma hipertensão, ou que tem uma infeção e precisa de ser visto, tem de ter um medico à espera, e em muitos centros não há”, afirmou, alertando: “e atenção que muitos destes profissionais não fizeram férias”.
Defendeu que o sistema “precisava de um esforço extra, de mais recursos humanos e mais capacidade para recuperar o que estava a ser feito” e lamentou: “O que nós estamos a ver é que não há essa capacidade de recuperação”.
O especialista alertou ainda para o atraso nos concursos para novos especialistas, sublinhando: “nós visitámos várias unidades em que havia médicos que já tinham acabado a especialidade e que continuam à espera de saber para onde é que vão trabalhar”.
“Passam meses e não lhes arranjam nenhuma definição para a sua carreira, eles aceitam oportunidades de trabalho no privado, ou mudam de ramo, ou vão para os cuidados continuados, que também precisam de médicos”.