No hotel Ukraine, situado mesmo em frente à Praça Maidan (Independência), palco das grandes convulsões políticas de início deste século no país eslavo, o ambiente era de apreensão, como em toda a cidade.
Muitos jornalistas dirigiam-se para a entrada e entravam em direto para as suas televisões, de costas para uma praça central anormalmente vazia nessa manhã de quinta-feira, e livre do caótico trânsito que entope as principais artérias desta metrópole de três milhões de habitantes.
Para o jornalista da agência Lusa foi um regresso, menos de três semanas após a primeira deslocação e estreia no país eslavo, que decorreu entre 24 e 29 de janeiro a convite da Academia de Imprensa Ucraniana e patrocínio da embaixada dos Estados Unidos, com deslocações às cidades de Kramatorsk e Severodonetsk, no Donbass sob controlo ucraniano.
Os dias anteriores ao do início da invasão tinham decorrido entre contactos oficiais e reportagens, com estadia no mesmo hotel, desta vez no 11º andar deste edifício de referência de Kiev. Em Severodontesk o alojamento tinha sido no Mir, Paz em eslavo, o que agora soa a ironia.
O Ukraine, construído em 1961 em pleno centro da cidade e inicialmente designado “hotel Moscovo”, foi erguido no local originalmente ocupado pelo primeiro arranha-céus da cidade, a Casa Ginzburg, propriedade de uma abastada família judaica e que foi arrasado pelas tropas soviéticas na sua retirada perante o invasor alemão, em 1941. A sua construção concluiu o conjunto arquitetónico da Khreshchatyk, uma das principais avenidas de Kiev, e um símbolo da reconstrução da parte central da cidade após a Segunda Guerra Mundial.
Nessa manhã, a cidade quase fechou. Deixaram de circular, táxis, e quase todos os veículos de transportes à exceção do metro, que também passou a servir de abrigo para a população.
Alguns jornalistas, apressados, carregaram as suas malas e equipamentos para a bagageira de carrinhas. O átrio do hotel, com as suas colunas alinhadas, grandes escadarias, amplos cadeirões, ficou quase deserto. Nas traseiras, já ninguém se recolhe junto ao “Templo do Arcanjo Miguel e Novos Mártires Ucranianos”, particular local de peregrinação onde regularmente vão prestar tributo dirigentes nacionais ou chefes de Estado, de Governo, ministros, em visita oficial.
Há o risco de ficar só, sem contactos, sem transportes. E há a perspetiva de tentar sair do país.
Na véspera, um alarmante telefonema do embaixador, após contacto com Lisboa, excluiu totalmente a hipótese da viagem que estava marcada, com a equipa da RTP, a Cândida Pinto e o David Araújo, em direção da Kramatorsk, na linha da frente do conflito com os territórios separatistas pró-russos.
O comboio partia às 06:10, mas não deverá ter chegado ao destino. Também foi aconselhada a saída imediata de Kiev em direção à fronteira oeste, à Polónia. Duas carrinhas preparadas no final da manhã dessa quinta-feira, levar o menos possível, têm de vir a pé até à embaixada, não podemos esperar, partir rapidamente… Não foi possível e os jornalistas ficaram na capital ucraniana.
Após algum desespero, o repórter da Lusa conseguiu finalmente garantir um táxi com a ajuda de um jornalista oficial. O objetivo foi juntar-se às equipas da RTP e SIC – Irina Shev, Rui do Ó, Ana Moreira e Fernando Silva – instaladas num outro hotel, num apelo gregário, de proteção, em tempos de grave crise.
Que contraste com o dia anterior, quando se dirigiu ao hotel para onde agora tentava alojar-se, para seguir com a Cândida e o David até um estabelecimento onde vendem coletes à prova de bala e capacetes, na perspetiva da viagem até ao Donbass.
Um trânsito infernal, as principais artérias cortadas pela polícia, o impulso de saltar do táxi e fazer o resto do caminho a pé, até ao local de encontro. Sempre a subir, nesta cidade também de pequenos montes e colinas.
Pelo caminho, veículos blindados e soldados totalmente fardados, uma, duas pessoas, caminham com ar pensativo. No átrio do novo hotel, uma azáfama. Chegou uma equipa da Cruz Vermelha, confirmam-se passaportes, uns no ‘check-in’, outros no ‘out’.
Na noite dessa quinta-feira, ainda se jantou no restaurante, “self-service” com diversas opções. Mas no dia seguinte, tudo mudou. O ruído das sirenes comprovava o início de uma guerra. Criou-se um abrigo improvisado no último piso da garagem, foram acolhidas famílias e outros habitantes do bairro mais sós. Estes trouxeram roupas, colchões, os seus animais e, alguns, cartas para passarem um tempo que parecia nunca mais terminar.
A entrada do hotel foi barricada com placas de madeira, a porta fechada, com um aviso à entrada indicando que o hotel não funciona e que o ATM não funciona. O piso menos dois, na garagem-abrigo, está repleto, quase sem mais espaço. Há casa de banho, e após percorrer alguns corredores um local para fumar. Mas os alojados no hotel mantêm privilégios, sobe-se aos quatros e está-se à vontade.
É tempo de racionamento, também sentido no hotel onde agora apenas se serve uma refeição quente, ao jantar e no abrigo. O pequeno-almoço, papas de aveia, um ovo cozido, ao almoço uma sopa instantânea e sandes, e há ainda bolachas, chocolates, sumos, água, café e chá em quantidade. A grande sala onde se serviam as refeições está vazia. Os pratos empilhados, os recipientes para a comida vazios. E do bar foram retiradas todas as garrafas em exposição.
Na manhã de hoje, foi possível sair à rua mais de 48 horas após um estrito recolher obrigatório motivado pela lei marcial. As informações oficiais falaram de “sabotadores” infiltrados na cidade, o silêncio da noite tinha sido interrompido por rajadas de metralhadora e o som de explosões, mais ao longe.
Nestes tempos de retiro, os jornalistas fazem diretos para as suas televisões, após recolherem as últimas informações, ou escrevem. As refeições são em conjunto e tenta-se decidir os próximos passos. Há contactos regulares com autoridades portuguesas, civis e militares. E recebem-se muitas mensagens dos mais próximos, de amigos. “Como estás? Bem? Força!”.
Há mais gente à espera na pequena mercearia que fica a poucos metros do hotel do outro lado da rua. Os enchidos empacotados, as conservas, a fruta, começam a desaparecer. Há muitos idosos, levam enlatados, chocolates, bolachas.
Chegam três soldados do exército ucraniano, armados e fardados, têm primazia. Compram tabaco, uns refrigerantes, e partem apressados. Um homem, cabelo grisalho, barba branca, fardado, passa encurvado com uma enorme mochila.
Há um sentimento de comiseração entre os ucranianos. Quase que se desculpam por também estarmos envolvidos numa situação tão imprevisível, que agora ameaça degenerar em guerra total.
“Também lamentamos que estejam aqui, não nos queremos sentir culpados, mas temos de defender a nossa terra”, disse-me uma habitante de Kiev durante um pequeno passeio por um parque. Mas são os ucranianos que vão ficar aqui, os restantes estão apenas de passagem.