Em declarações à imprensa, em Nova Iorque, para assinalar os seis meses de guerra entre Israel e o grupo islamita palestiniano Hamas, Guterres frisou que “nenhuma parte das decisões de vida ou morte, que afetam famílias inteiras, deve ser delegada ao cálculo frio de algoritmos”, uma situação que se tem verificado em áreas residenciais densamente povoadas.
“Há muitos anos que alerto sobre os perigos de transformar a IA em armas e de reduzir o papel essencial da agência humana. A IA deve ser usada como uma força do bem para beneficiar o mundo, não contribuir para travar uma guerra a nível industrial, desfocando a responsabilização”, declarou o secretário-geral.
Num balanço dos seis meses de guerra em Gaza, Guterres afirmou que, em “velocidade, escala e ferocidade desumana”, trata-se do mais mortal dos conflitos – para os civis, para os trabalhadores humanitários, para os jornalistas, para os profissionais de saúde e para os próprios trabalhadores das Nações Unidas.
Cerca de 196 trabalhadores humanitários – incluindo mais de 175 membros do pessoal da ONU – foram mortos neste conflito.
A maioria das vítimas servia a Agência das Nações Unidas para os Refugiados Palestinianos (UNRWA), considerada a “espinha dorsal” de todos os esforços de socorro em Gaza, mas também a Organização Mundial de Saúde ou o Programa Alimentar Mundial. Alguns eram também trabalhadores de organizações como Médicos sem Fronteiras, Crescente Vermelho e da World Central Kitchen, que esta semana viu sete dos seus membros mortos num ataque israelita.
Particularmente sobre esse ataque, o ex-primeiro-ministro português defendeu que, apesar do Governo israelita ter reconhecido erros e anunciado algumas medidas disciplinares face ao assassínio dos sete trabalhadores da World Central Kitchen, a correção dessas falhas requer investigações independentes e “mudanças significativas e mensuráveis no terreno”.
“O problema essencial não é quem cometeu os erros, é a estratégia militar e os procedimentos em vigor que permitem que esses erros se multipliquem continuamente”, disse.
No rescaldo desse ataque, que Guterres classificou como “tragédia”, as Nações Unidas foram informadas pelo Governo israelita da sua intenção de permitir um aumento substancial da ajuda humanitária distribuída em Gaza.
“Espero sinceramente que estas intenções se concretizem de forma eficaz e rápida, porque a situação em Gaza é de absoluto desespero. As condições humanitárias dramáticas exigem um salto quântico na prestação de ajuda vital – uma verdadeira mudança de paradigma”, apelou.
Na sua declaração, António Guterres recordou ainda as vítimas do ataque de 07 de outubro contra Israel, tendo condenado novamente o uso da violência sexual, tortura, ferimentos e o rapto de civis, assim como lançamento de foguetes contra alvos civis e a utilização de escudos humanos.
O líder da ONU aproveitou novamente para apelar à libertação incondicional de todos os reféns ainda detidos pelo Hamas e outros grupos armados, defendendo que, até à sua libertação, sejam “tratados humanamente” com visitas e assistência do Comité Internacional da Cruz Vermelha.
“Encontrei-me com muitos familiares de pessoas mantidas em cativeiro e até com ex-reféns. Carrego comigo sua angústia, incerteza e dor profunda todos os dias”, admitiu.
Guterres voltou a reforçar que “nada pode justificar a punição coletiva do povo palestiniano”, sublinhando que a campanha militar israelita levou “morte e destruição implacáveis” aos civis em Gaza – com mais de 32 mil pessoas reportadas como mortas e mais de 75 mil feridas – a grande maioria mulheres e crianças.
“Vidas estão destruídas. O respeito pelo direito humanitário internacional está em frangalhos. (…) Quando os portões da ajuda são fechados, as portas da fome se abrem. Mais de metade da população – mais de um milhão de pessoas – enfrenta uma fome catastrófica”, alertou.
O secretário-geral lamentou que crianças em Gaza estejam hoje a morrer por falta de comida e água, considerando esta uma situação “incompreensível e totalmente evitável”.
“Seis meses depois, estamos à beira da fome em massa, de conflagração regional, de uma perda total de fé nos padrões e normas globais. É hora de recuarmos nessa situação, de silenciarmos as armas, de aliviarmos o horrível sofrimento e de acabarmos com uma potencial fome antes que seja tarde demais”, concluiu.
Lusa